PAULO BROSSARD
O jurista diz que o País só continuará a avançar se fortalecer os partidos e afirma que o Judiciário não pode governarPor SÉRGIO PARDELLAS
Aos 83 anos, o jurista gaúcho Paulo Brossard de Souza Pinto ainda coloca todos os dias na cabeça seu velho chapéu- panamá e vai trabalhar em seu escritório de advocacia, em Porto Alegre (RS). Brossard saboreia este ano, por exemplo, a vitória no processo em que o Supremo Tribunal Federal ratificou a fidelidade partidária, permitindo aos partidos ingressarem na Justiça para obter de volta os mandatos dos políticos que trocaram de legenda. Brossard foi o advogado dos partidos que reclamavam do troca-troca. Para o advogado, essa decisão pode ser o início de uma mudança importante na vida política do País. Brossard é um dos raros brasileiros que ocuparam postos de destaque em cada um dos três Poderes da República: foi deputado, senador, ministro da Justiça e ministro do STF. Segundo ele, é na falta de consistência partidária que residem os grandes problemas políticos do País, que dão origem a casos como o do Mensalão e promovem o condenável toma-lá-dá-cá.
ISTOÉ - Em 1986, como ministro da Justiça, o sr. dizia que, com um choque de democracia, o Brasil avançava para um novo patamar histórico. Vinte anos depois, que análise o sr. faz? Paulo Brossard - Estou preocupado com coisas que não aconteciam e que passaram a acontecer no Brasil. Fui parlamentar durante 24 anos. Como deputado federal e senador, eu peguei o período mais duro do regime autoritário. Não posso dizer que aquele tempo fosse um mar de rosas, mas não havia coisas como o Mensalão.
ISTOÉ - Mas o fato de o STF acatar a denúncia sobre o Mensalão, por exemplo, não pode mudar esse tipo de prática? Brossard - Ainda bem que aconteceu isso. O Supremo acertou ao acatar a denúncia. Mas esse é um fato que não pode provocar maiores ilusões. Tratase de um processo demorado. Tem muita gente. Cada denunciado tem direito a arrolar uma série de testemunhas.
ISTOÉ - De qualquer modo, há quem avalie que o Supremo hoje está mais próximo da sociedade... Brossard - É. O Brasil está mudando. A sociedade vai mudando. É bom que o Judiciário reflita isso. O ministro Joaquim Barbosa é um exemplo de que a sociedade está mudando e é bom que o Judiciário viva esse momento. Mas é preciso fazer um alertar: não se governa com processo-crime. Processo-crime é para cuidar da delinqüência. Não é meio de governo.
ISTOÉ - O que o sr. quer dizer com isso?Brossard - Que nós não podemos imaginar uma democracia sustentada no Judiciário para corrigir as coisas. Não pode ser só Judiciário, Judiciário, Judiciário. O Judiciário julga, não governa. É preciso distinguir as coisas. Ainda hoje vi no jornal que, se houver uma medida provisória restabelecendo a CPMF, o Judiciário vai ter que se manifestar. Não pode haver espaço sequer para se cogitar uma coisa dessas.
ISTOÉ - Então o tal choque de democracia a que o sr. se referia não deu certo no Parlamento brasileiro? Brossard - Não. O problema é da sociedade brasileira. O Congresso não pode ser melhor do que a sociedade. O Congresso é o retrato da sociedade. A sociedade brasileira vem sofrendo uma erosão de valores muito grande.
ISTOÉ - Toda a sociedade?Brossard - Vou citar um exemplo. Numa universidade, há um problema qualquer, uma greve. Então, os estudantes resolvem invadir e tomar conta da sede da reitoria. A reitoria entra com uma ação na Justiça. O juiz determina a reintegração de posse. Os estudantes não cumprem. Simplesmente, comunicam que não vão cumprir. E a coisa fica por isso mesmo. Os estudantes não saem. A determinação do juiz não vinga, e pronto. Isso é um sinal claro de deterioração da sociedade. De falta de respeito às regras mais elementares. E olha que eu não escolhi o morro como exemplo. Eu escolhi uma universidade. Isso é um fenômeno grave.
ISTOÉ - Qual é a saída? Brossard - Investimento em educação resolve em parte, mas não resolve tudo. Entramos, infelizmente, numa fase em que vale tudo. Não há mais critérios, os critérios são objeto de menosprezo. Voltando, então, à questão da Câmara e do Senado, eles não estão lá por acaso. Foram eleitos.
ISTOÉ - Mas há países que passaram por descrédito semelhante e se recuperaram? Brossard - Sim, mas uma reação dessas não é feita de uma hora para a outra. A França, nas décadas de 30 e 40, era um país com todas as qualidades, mas era uma deterioração política muito grande. Aí capitulou diante do nazismo e viveu a fase colaboracionista. Foi um período trágico. E foi preciso pagar com sangue aquela vergonha. Quatro anos depois, em 1944, De Gaulle, no desfile triunfal pela avenida Champs Elysées, caminhou em meio à multidão como um libertador da França e tornou-se uma figura histórica tão intensa como Joana d'Arc fora na França medieval.
"Castello extinguiu os partidos e criou duas organizações provisórias. O resultado foi bom para o governo e o provisório virou definitivo"
ISTOÉ - Uma reforma política não seria a solução para o Brasil? Brossard - Qual reforma política? Todo mundo fala e ninguém sabe o que é. Gostaria de saber qual é essa reforma. É como a tributária, de que todo mundo fala, mas também ninguém sabe qual é. Essa é a realidade. A situação a que chegamos e não poderíamos ter chegado. Não se brinca com certas coisas na democracia. Depois, levam-se 20 anos para corrigir.
PAULO BROSSARD''O Brasil está mudando''O jurista diz que o País só continuará a avançar se fortalecer os partidos e afirma que o Judiciário não pode governarPor SÉRGIO PARDELLAS
ISTOÉ - Em que a nossa democracia falhou? Brossard - Uma das causas é o desaparecimento dos partidos. O processo que levou à ditadura militar e depois à redemocratização foi cruel com a vida partidária brasileira. Nesse processo, os partidos foram extintos duas vezes num período de apenas 20 anos. Nós nunca tivemos uma vida partidária forte, nunca tivemos partidos grandes e fortes. Sempre houve resistência e preconceito contra os partidos. Quantas vezes eu ouvi: "Não, não se vota em partido, vota-se em nome, em pessoas". E isso é um erro grave.
ISTOÉ - Por quê? Brossard - Porque, em qualquer circunstância, as pessoas adotam compromissos com os princípios dos partidos que as acolheram. Mas esse é um problema cultural nosso. No Estado Novo era proibido haver partidos. Em 1945, com o restabelecimento do processo democrático, foram criados os partidos. A lei estabeleceu que os partidos deveriam ser nacionais. A lei pode muito, mas não pode tudo. Os partidos eram nominalmente nacionais, mas em verdade eram associações muito locais.
ISTOÉ - Mas se tornaram partidos nacionais.Brossard - Sim, depois de 20 anos. E aí veio a ditadura e o marechal Castello Branco extinguiu os partidos. Foram criadas, por necessidade, duas organizações provisórias com atribuições de partidos políticos. O resultado foi muito bom para o governo e ele transformou os provisórios em definitivos. E foram criadas duas entidades que deveriam ser os dois únicos partidos do País (Arena e MDB). Era o ideal dos ideais. Até porque um era grande e o outro era pequeno. Só que, depois de 15 anos, foi mudando. O grande se enfraqueceu e o pequeno foi ganhando músculos e extinguiram-se esses partidos. Criou-se, então, uma situação em que qualquer um pode fazer um partido. Não há seriedade alguma.
ISTOÉ - O sr. entende, então, que o Brasil não tem partidos políticos de verdade. Brossard - Esse foi o resultado depois de 20 anos de autoritarismo. Um partido é um complemento ao cidadão. Mas um partido sem cidadãos não existe. O que acontece é que qualquer sujeito sem qualquer expressão faz qualquer partido. E os partidos se tornaram meramente símbolos, títulos. Hoje, são não sei quantos partidos, mas você não é capaz de dizer o nome dos líderes na Câmara. Ninguém é capaz. Nem dentro da Câmara eles sabem. Porque esses partidos não têm existência real.
ISTOÉ - O sr. está dizendo que só com partidos mais fortes é que o Brasil poderá se livrar do toma-lá-dá-cá que reina no Congresso? Brossard - É preciso haver identidade partidária. Veja bem, o presidente Lula teve na primeira eleição cerca de 60% dos votos. Na segunda eleição, um pouco menos. Eu pergunto: quantos deputados elegeu o partido do presidente da República? Na primeira eleição não chegou a 100, numa Câmara com 513 parlamentares. Na segunda eleição, ainda foi menos. Pode funcionar um sistema em que acontece isso? Aí é que está. Essa realidade ninguém parece capaz de ver.
ISTOÉ - Como solucionar isso?Brossard - Sem uma mudança no atual sistema, não parece haver solução. É um irrealismo. Você não pode governar. Em qualquer lugar do mundo, governa quem tem maioria. Quem não tem maioria, não tem como governar. Aqui no Brasil, não. Porque se escolhe o presidente em voto direto, como se fosse uma coisa maravilhosa e definitiva, mas ele não tem maioria na Câmara e no Senado. Pode governar? Não pode governar. Aí faz essa mercância, esse mercado aberto e despudorado.
ISTOÉ - O entendimento do TSE de que os mandatos pertencem aos partidos contemplou o princípio da fidelidade partidária?Brossard - Contemplou sim, não há dúvida. Mas eu entendo que o mandato parlamentar não é exclusivamente do partido nem exclusivamente do candidato. Há uma dupla titularidade. Há dois sujeitos. É um condomínio. Ninguém pode ser candidato sem partido. É uma condição de elegibilidade. Mas, uma vez eleito, o parlamentar também tem seus direitos e suas prerrogativas. O partido sem candidato não elege ninguém.
ISTOÉ - Como o sr. avalia a atuação da Polícia Federal durante o governo Lula?Brossard - Acho que a Polícia Federal tem um campo de atuação muito amplo. Mas ela não é absoluta. Está sujeita à norma legal. Uma investigação policial às vezes pode partir de elementos que são impressionantes. E depois, com a investigação, vai se revelar que eles não eram tão impressionantes como pareciam. Por isso, a autoridade tem que ter cuidado. É uma coisa fácil de dizer, mas não é fácil de fazer.
"Lula teve 60% dos votos e o PT fez pouco mais de 100 deputados numa Câmara de 513. Como pode funcionar um sistema assim?"
ISTO É - O sr. acha que está havendo excessos? Brossard - É preciso respeitar o acusado. Com objetividade, com seriedade e cautela. Agora, se chegou à conclusão de que há dados suficientes para o oferecimento da denúncia, ofereça. Encaminhe ao Ministério Público para esse fim. Depois a Justiça vai dizer se procede ou não procede. Agora, não se deve ficar colocando no jornal quando a situação está numa fase investigatória. Porque amanhã a própria investigação pode concluir pelo descabimento.
ISTOÉ - E algemar as pessoas? Brossard - Acho um abuso algemar qualquer pessoa. Pessoas que não são capazes de correr três passos. O que é isso? Não se respeita ninguém. O acusado não merece respeito? O acusado não é criminoso antes de ser condenado. É preciso ter critério. Claro, há determinadas pessoas que são de notória periculosidade. Aí, a polícia tem a faculdade de tomar essas precauções. Mas há outros que não têm uma ficha criminal assim. Para que isso? É um excesso que não contribui para nada.
Fonte: ISTOÉ online
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