'A gente não matava. Prendia e entregava', afirma militar que comandou área de informações do Exército
Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo
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SÃO PAULO - O Exército brasileiro prendeu militantes montoneros e de outras organizações da extrema-esquerda latino-americana e os entregou aos militares argentinos. "A gente não matava. Prendia e entregava. Não há crime nisso." A afirmação é do general-de-divisão da reserva Agnaldo Del Nero Augusto, um dos primeiros militares brasileiros a romper o silêncio mantido pelo Exército sobre o tema.
Oficial de Cavalaria e ex-integrante nos anos 70 da Seção de Informações do Estado-Maior do 2º Exército, em São Paulo, Del Nero serviu como adido no Paraguai em 1979 e 1980. Nos anos 80, tornou-se o chefe da Seção de Operações do Centro de Informações do Exército (CIE). O general contou ao Estado que, quando o Brasil recebia de um país amigo informações sobre um estrangeiro suspeito que ia entrar no País, o que se fazia era a sua detenção e o seu encaminhamento àquele país.
"Foi o que aconteceu com esses dois italianos", diz. Del Neto se refere ao caso dos ítalo-argentinos Horácio Domingos Campiglia e Lorenzo Ismael Viñas. Campiglia foi preso em companhia de Mônica Suzana Pinus de Binstock no Rio, em março de 1980, no Aeroporto do Galeão. Havia desembarcado de um vôo que vinha da Venezuela. Viñas foi detido em Uruguaiana (RS), em junho de 1980. Eles eram militantes do Montoneros, grupo da esquerda peronista que defendia a luta armada na Argentina.
Documentos mostram que os militares argentinos informaram os brasileiros sobre a chegada dos militantes ao Brasil e receberam autorização para executar a operação no País. "Quando se recebia essa informação, podia ser que o cara estivesse só de passagem ou ele vinha também aqui se incorporar a alguma ação, e a gente não sabia. Então, a prisão dele tinha de ser feita, pois não se sabia o que esse cara pretendia. E como a gente não matava, entregava", contou o general Del Nero.
Ele questionou o objetivo dos ítalo-argentinos, "membros da organização subversivo-comunista Montoneros, ao ingressarem ilegalmente no País". "Que crime há em tê-los prendido?" Campiglia e Vinãs planejavam regressar à Argentina e retomar a ação armada. Presos no Brasil, foram enviados à Argentina e desapareceram, o que levou a Justiça italiana a decretar na semana passada a prisão de 13 brasileiros acusados de envolvimento no caso.
JCR
Segundo o general Del Nero, a ação integrada dos Exércitos do Cone Sul, mais conhecida como Operação Condor, contra os grupos de esquerda era necessária, pois essas organizações se haviam unido menos de um ano depois do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, no Chile, com a fundação, em Paris, da Junta de Coordenação Revolucionária (JCR).
Participavam da junta o chileno Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR, na sigla em espanhol), o argentino Exército Revolucionário do Povo (ERP), o uruguaio Movimento de Libertação Nacional (Tupamaros) e o boliviano Exército de Libertação Nacional (ELN). Segundo o general, o secretário da JCR era o cubano Fernando Luis Alvarez. Assim, a criação da junta levou os Exércitos da América do Sul a reagir. "Mas a participação brasileira na Operação Condor se limitou a colaborar com informações, a treinar agentes estrangeiros e a monitorar subversivos."
Exemplo disso foi o pedido de busca 571/74, enviado pelo CIE a órgãos de segurança de todo o País. Nele, a inteligência do Exército pedia que procurassem informações sobre o soldado argentino Mario Antônio Eugênio Pettigiani. Militante do ERP, ele era acusado de participar do ataque em 1974 à Fábrica Militar de Pólvora, em Córdoba. Pettigiani desapareceu após seqüestrado em Buenos Aires, em 1978.
Em 1976, o CIE difundiu outro pedido de busca, o 036/76, no qual relatava suposta operação da JCR em Tucumán, na Argentina. Os militares estavam atrás de informações sobre "o montonero Ricardo Garrochateguy" e sobre o político argentino Tito Lívio Vidal.
Segundo o CIE, Vidal abastecia os montoneros de Santa Fé com armas. Para tanto, veio ao Brasil e recebeu armas de pessoas ligadas ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). O Exército dizia ainda que o ataque ao quartel do Regimento de Infantaria do Monte 29, na província de Santa Fé, havia sido planejado no Brasil. Na ação, em 5 de outubro de 1975, morreram 12 militares argentinos e 16 guerrilheiros. "Os detalhes finais da operação foram discutidos no Brasil, onde, em Foz do Iguaçu, chegara dias antes o líder máximo dos montoneros, Mário Firmenich", registra o documento.
Conferências
Outros papéis relatam prisões no País. Na pasta OS270 da Divisão de Ordem Social do Departamento de Ordem Social e Política (Dops-SP) há o registro da prisão em São Paulo, em 1977, de Hector Boccaro, suspeito de ser montonero. "Havia ligações entre os Exércitos, que eram as conferências bilaterais de inteligência, que continuaram até recentemente", disse o general. Para ele, em "uma guerra irregular", como a que ocorreu na América Latina, regimes democráticos ficavam diante de um dilema: impor restrições ao Estado de Direito ou correr sério risco de serem derrotados.
"Os terroristas não obedecem a lei nenhuma, mas querem usufruir das garantias que a democracia oferece. O grande erro (do governo) foi, quando foi feito o AI-5, não ter declarado (estado de) guerra. Olha: ‘Nós estamos em guerra’."
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