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sábado, maio 27, 2023

Desrespeitável público




O Congresso Nacional se tornou um picadeiro de circo na atual legislatura, em que a política deu lugar à diversão. 

Por José Brito e Rodolfo Borges 

O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara prevê que os deputados devem exercer o mandato com dignidade e tratar os colegas com respeito. É o mínimo para uma convivência harmoniosa em qualquer ambiente. Mas a sobriedade não rende cliques, nem viraliza nas redes sociais. Eleitos com um comportamento estridente na internet, esses parlamentares levaram para o Congresso Nacional uma nova forma de fazer política, na qual a exigência de decoro perdeu o sentido.

Instaladas nesta semana, a CPI do MST e a CPMI do 8 de janeiro entregaram, logo nos primeiros minutos de reunião, todo o barulho que prometiam. Troca de ofensas pessoais, gritaria e tumulto. E memes, como profetizou no início do mês a ministra do Planejamento, Simone Tebet. O senador Otto Alencar (PSD-BA) disse a Marcos do Val (Podemos-ES) que a comissão mista “não é delegacia de polícia”, para demandar que o colega parasse de interromper seus pares. Damares Alves (Republicanos-DF) pediu moderação e chegou a mencionar a adoção de “classificação indicativa”, para proteger as crianças que porventura assistam às reuniões pela tevê. Membro da CPMI, Magno Malta (PL-ES) foi outro destaque da semana, com um discurso tão confuso em defesa de Vinicius Junior, vítima de racismo na Espanha, que soou como ofensa racial. Esses personagens roubaram a cena, mas havia coisas muito mais importantes ocorrendo em Brasília, como o enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente.

Nikolas Ferreira (PL-MG) se tornou, na eleição de 2022, o deputado mais votado da história do Brasil, com 1,49 milhão de votos. Graças ao apoio de seus 7,5 milhões de seguidores no Instagram, 2,5 milhões no Twitter e 1,3 milhão no Facebook. Logo no segundo mês de seu mandato de estreia, o mineiro protagonizou o assunto político mais comentado do ano, ao colocar uma peruca e provocar a bancada feminina com um discurso proferido em plenário no Dia Internacional da Mulher. Pesquisa Quaest/Genial indicou que esse episódio despertou mais atenção do que o caso das joias sauditas de Jair Bolsonaro, a CPMI do 8 de janeiro ou a proposta de novo arcabouço fiscal do governo, por exemplo. As redes se transformaram em um termômetro instantâneo de popularidade para os políticos — e em uma tentação praticamente impossível de resistir.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), repreendeu Nikolas publicamente pelo episódio da peruca. Após cenas recorrentes de má conduta dos colegas, Lira mandou avisar que os parlamentares malcomportados podem ser suspensos com mais frequência e passar o período de punição sem salário. Por provocar as feministas, o deputado mineiro se tornou alvo de representação no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Quase três meses depois do caso, não há qualquer sinal de punição, como de costume.

Na última legislatura, foram protocoladas 60 representações contra deputados por quebra de decoro. O número é seis vezes maior do que as dez apresentadas na legislatura 2006-2010, e só perde para as 96 denúncias formuladas durante os quatro anos do primeiro governo Lula, quando estouraram os escândalos do mensalão e da Operação Sanguessuga. Apesar do aumento progressivo nas reclamações contra os parlamentares nos últimos anos — foram 20 representações de 2011 a 2014 e 28 de 2015 a 2018 —, nenhum deles perdeu o mandato por se comportar mal, ofender ou xingar colegas em plenário. E não foi por falta de tentativa, tanto à esquerda quanto à direita.

Recordista em representações por quebra de decoro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) já foi alvo de 12 processos em seus três mandatos — apenas três deles foram analisados, todos arquivados. No mês passado, foi ele que virou a vítima de uma grave ofensa. Durante audiência na Câmara, Dionilso Marcon (PT-RS) disse que seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, foi alvo de uma “facada fake” na eleição de 2018, reverberando uma teoria da conspiração da esquerda mais aloprada. Eduardo reagiu partindo para cima do colega. “Te enfio a mão na cara e perco o mandato”, disse o filho 03 de Bolsonaro, que não parecia temer de fato a perda do posto.

Outro que se notabilizou por atuar sem medo da cassação é o ex-deputado Daniel Silveira. Ele foi denunciado ao Conselho de Ética nove vezes em sua única legislatura, e conseguiu se manter no cargo até janeiro deste ano, mesmo após ter sido condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por ameaçar a democracia brasileira — o STF derrubou há três semanas o indulto que Bolsonaro tinha lhe concedido.

Apesar de a direita nacional se destacar nesse ambiente de guerrilha virtual, os parlamentares de esquerda não ficam para trás nas agressões. Em 2016, o ex-deputado Jean Wyllys cuspiu no então colega de Câmara Jair Bolsonaro durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff. O Conselho de Ética deliberou, à época, por lhe impor uma censura escrita. Este ano, o deputado André Janones (Avante-MG), que se converteu ao lulismo durante a última eleição, notabilizou-se por provocações e causou tumulto ao chamar Nikolas Ferreira, seu adversário em Minas, de “Chupetinha” durante audiência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Já Márcio Jerry (PCdoB-MA) foi acusado por Júlia Zanatta (PL-SC) de assédio sexual, por se aproximar de forma imprópria durante discussão, até encostar o rosto nos cabelos da deputada.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, gostou da troca de farpas com os parlamentares da oposição e não foge aos embates. Ele foi o primeiro membro do governo Lula a ultrapassar 10 milhões de interações nas redes sociais, segundo dados da consultoria Arquimedes. Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, também tem mostrado jogo de cintura, e alegou que estava esperando a chegada de um bebê para evitar o constrangimento de receber a réplica de um feto do senador Eduardo Girão (Novo-CE).

O Senado é menos estridente, mas não escapa de baixarias. Senadores petistas, como Fabiano Contarato (ES) e Rogério Carvalho (SE), não perdem oportunidade de fustigar Sergio Moro (União-PR) com ataques pessoais, por sua condução da Operação Lava Jato, que levou Lula à cadeia. Já Cid Gomes (PDT-CE) achou boa ideia levar um quadro negro à audiência com o presidente do Banco Central, para dar uma lição torta sobre taxa de juros a Roberto Campos Neto — ao final da explanação, entregou um boné com a marca de um banco ao convidado.

Os responsáveis por colocar ordem na Casa legislativa não parecem saber muito bem o que fazer. “É um desafio muito grande conduzir o Conselho de Ética neste momento turbulento. Saímos de eleições presidenciais extremamente polarizadas, um extremismo reina no Parlamento”, diz Leumar Leumanto Jr. (União-BA), presidente do Conselho de Ética da Câmara. Ele promete firmeza, mas diz preferir o diálogo e a orientação. O corregedor da Câmara, Domingo Neto (PSD-CE), diz que tem feito reuniões para tentar acalmar os ânimos. “Se muitos deles vêm de um debate de péssimo nível e sem nenhum tipo de restrição nas redes sociais, não quer dizer que na Câmara dos Deputados tenham a mesma condição de fazer tudo como faziam na internet”, argumenta.

O cientista político Bruno Silva, pesquisador do Laboratório de Política e Governo da Unesp, só enxerga solução no castigo exemplar. “Não há problema numa figura política performática. O problema é a performance não contribuir com o debate público efetivo, com a discussão pública”, diz Silva.

O problema de fundo é que esses comportamentos não ocorrem porque os políticos eventualmente perdem a linha em uma discussão mais acirrada. Grande parte dessas ações é parte de uma estratégia para capturar a atenção de eleitores que esperam que eles se comportem exatamente assim. A política, então, deixa de ser a busca por consensos tendo em vista o bem comum e faz do espetáculo um fim em si mesmo. Quanto mais palhaçadas, mais aplausos e mais votos na próxima eleição. Configura-se aquilo que o escritor peruano Mario Vargas Llosa chamou de a “civilização do espetáculo”, fenômeno que não se restringe à política. “A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política são sintomas de um mal maior que afeta a sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo nossa natural propensão a nos divertirmos”.

Uma prova de que esse tipo de atitude responde aos anseios dos eleitores pode ser encontrada no que ocorreu com a deputada Carla Zambelli (PL-SP), que mandou um colega tomar no ** durante audiência mês passado. Obrigada a pagar multas em diversos processos por danos morais, ela promoveu uma vaquinha nas últimas semanas para arcar com suas obrigações legais. Pedia 54 mil reais, mas anunciou ter recebido mais de 168 mil reais de seus apoiadores, que enxergam virtudes naquilo que a Justiça brasileira condena.

Nada é mais eloquente do que o relatório em que o deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) sugeriu apenas uma censura escrita a Daniel Silveira, em um de seus nove processos por quebra de decoro. O parlamentar destacou que o famigerado episódio em que seu ex-colega de Câmara quebrou uma placa em homenagem à falecida vereadora Marielle Franco ocorreu antes do início de seu mandato. O fato não poderia, portanto, ser levado em consideração no julgamento de sua conduta como deputado. Garcia arrematou: “O fato foi amplamente noticiado à época e era do conhecimento do público eleitor, o qual, sendo o único censor que, caso quisesse, poderia impor alguma reprovação ao então candidato Daniel Silveira, terminou por sagrá-lo digno para o desempenho do mandato parlamentar nesta Casa”.

Pode ser que o Conselho de Ética casse, algum dia, o mandato de um parlamentar que não se comportar bem, mas é o eleitor, em última instância, que define quem merece representá-lo no Parlamento. No picadeiro de Brasília, a política cede espaço ao entretenimento.

Revista Crusoé

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