Por: Reinaldo Azevedo
Há uma perspectiva nesse escândalo todo protagonizado pelo PT que não foi até agora observada e que, entendo, é, de todas, a mais preocupante: o sistema político que temos se mostrou absolutamente poroso ao tipo de invasão que o petismo promoveu. Estava e está despreparado para se proteger dessa forma de assalto à legalidade e à institucionalidade. Já se escreveu aqui e se vai repetir quantas vezes for necessário fazê-lo: não fossem as duas entrevistas de Roberto Jefferson a Renata Lo Prete, a crítica ao caráter autoritário do partido e à sua visão de mundo totalitária estaria restrita a alguns articulistas, a alguns círculos e a alguns veículos — este Primeira Leitura entre eles. Mas não teria chegado à grande imprensa com certeza. Embora este site tenha tido em março 2,2 milhões de page views e se possa amá-lo ou odiá-lo, mas não ignorá-lo, é certo que sua influência é mais forte num nicho de pensamento e do leitorado: o dos muito informados.
Lembro-me de que, nos dias que se seguiram à primeira entrevista, alguns coleguinhas jornalistas torceram o nariz: “Esse Jefferson não é de confiança”. Não duvido que muitos, se lhes fosse dado escolher, talvez tivessem até amoitado a entrevista. Devemos uma boa fatia da história que conhecemos à jornalista. Mas, é claro, a natureza do PT, mesmo sem o conhecimento daqueles casos escabrosos, já tinha sido abordada. E a reação era sempre a mesma: incredulidade, desconfiança e até um certo rancor, este também derivado da óbvia simpatia de boa parte dos jornalistas, ainda hoje, pelo partido. É um mal que carregam da universidade, onde praticamente só têm aulas com professores de esquerda (em nome da pluralidade, é claro!), para as redações. Até que se livrem da canga, vai um certo tempo.
Mesmo entre intelectuais e políticos que não gostam do PT, a crítica mais severa ao partido, precisamente aquela voltada para sua concepção totalitária, era repudiada. Encontrei em epígrafe no excelente The Captive Mind, de Czeslaw Milosz, um ditado atribuído a um velho judeu da Galícia: “Quando alguém está 55% certo, isso é muito bom e não há discussão. Se alguém está 60% certo, isso é maravilhoso, é uma grande sorte, ele que agradeça a Deus. Mas o que dizer sobre alguém estar 75% certo? Os prudentes já acham isso suspeito. Bem, e sobre estar 100% certo? Quem quer que diga que está 100% é um fanático, um facínora, o pior tipo de velhaco”.
O texto, claro, deve ser entendido na sua vertente irônica. Vivemos dias em que só a morte da convicção sobrevive, em que ter certezas é considerado um ato arrogante, quase criminoso. Para defender a democracia, é preciso antes relativizar a sua universalidade, quase pedindo desculpas por achar, vejam só, que é mesmo um modo superior e melhor de organizar a sociedade. Para apontar o caráter regressivo do islamismo, é preciso acertar as contas com o colonialismo europeu dos séculos 19 e 20; para censurar os ataques terroristas de palestinos, diga, antes, que você, obviamente, defende um Estado autônomo e a saída de Israel da Cisjordânia — reconhecendo, então, como um estúpido óbvio, que o terror é uma forma legítima de luta. Vale dizer: demonstre que você está, no máximo, 60% convicto de suas idéias. Não seja jamais um canalha, um velhaco: duvide sempre de si mesmo, não por método, mas porque a certeza ofende. Se debaterem eutanásia e você for contra, jamais diga de cara: “Sou contra”. Comece por buscar circunstâncias e situações em que ela seria admissível. Em suma, a regra é negar-se para ser aceito.
Por que se escreve isso aqui? Você tem idéia, leitor, de quantas foram as vezes em que acusaram o nosso fanatismo e o nosso “antipetismo”? E sempre o fizeram justamente quando apontávamos, ainda sem ver e sem saber, o que o procurador-geral da República apontou porque viu e soube? A explicação foi dada aqui há dois dias: não existe ato criminoso se não existe uma idéia criminosa que lhe dê suporte. Ah, mas se criticava o nosso radicalismo, essa mania de, em muitos casos e temas, demonstrarmos não 55%, não 60%, nem mesmo os suspeitos 75%, mas os insuportáveis 100% de convicção. Se fôssemos ao menos mais humildes...
Porque muitos consideravam que o “petismo” era uma categoria de pensamento, achavam que o nosso suposto “antipetismo” era uma profissão. Não era. Não é. O PT é que é, isto sim, a manifestação mais saliente, importante e organizada para tentar dar um by pass na democracia. Isso estava e está em sua história, em sua visão de mundo, na descarada adoção do presente eterno como seu único norte ético. O truque retórico sempre foi o mais sujo possível. Quando se escrevia aqui que Lula se orgulhava (e se orgulha) de sua ignorância, então exercíamos preconceito de classe, como se o dito-cujo fosse “a” classe. Hoje, quando se fala em “organização criminosa”, alguns vêem uma forma de macarthismo — porque, claro, só se pode criticar o PT se você exerce alguma forma de intolerância.
Um monte de gente caiu e cai nessa conversa, especialmente na imprensa. Alguns, tentando reinventar o passado, dizem até que havia um enorme preconceito contra Lula e, na verdade, não é que defendessem a sua candidatura: combatiam era aquela má consciência. Que preconceito? Criticar em 1989, 1994 ou 1998 um partido que se dizia socialista e que defendia a “ruptura” com “a ordem vigente” (qual?) era preconceito ou sensatez? Claro, tudo dependia do entendimento que se tivesse da democracia.
Volto ao ponto. Continuo interessado em saber como é que podemos tornar a democracia brasileira impermeável à sanha dos que querem assaltá-la. Esse é o debate que me interessa.
[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
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