por Priscyla Costa
Juízes não deveriam tomar decisões complexas que influem na estrutura de negócios empresariais sem considerar ao menos o que já é consenso na literatura de Direito Econômico. Mas a falta de atualização do Judiciário sobre as regras de defesa da concorrência faz com que se cometam certas impropriedades.
“Defendi um caso em que meu cliente foi condenado pelo juiz criminal por formação de cartel e o Cade sequer recebeu o processo. O juiz não ouviu ninguém e decidiu, pelos depoimentos, condená-lo a cinco anos e meio de prisão, conta o advogado Marcos Vinícius de Campos, especialista em Direito Administrativo e vice-diretor da faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o professor defendeu as atribuições do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e afirmar que juízes e advogados não entendem as regras do Direito Administrativo. “Juiz federal não pode tomar decisão sem fundamentar e destruir quatro, cinco anos de trabalho em uma canetada. Isso gera instabilidade e insegurança.”
Para o professor, o Cade teria de opinar nos processos de fusão entre bancos, porque fará o papel de antagonista. “É o órgão que vai defender a idéia da concorrência”, defende. Há um projeto de lei que prevê que o Conselho seja ouvido nos atos de concentração bancária. “Mas o Banco Central não quer, porque vai perder poder.”
Marcos Vinícius de Campos também falou sobre ensino jurídico e concluiu que está na hora de proibir o surgimento de novas escolas de Direito. “Acredito que o Estado tenha de interferir o mínimo possível, mas nesta questão não vejo como o Estado não interferir”, afirma.
O professor fez ensino fundamental e ensino médio em escolas públicas. No ensino superior, conciliou três cursos. Entrou na Fundação Getúlio Vargas, depois na Universidade de Direito do Largo São Francisco (USP) e cursou a FEA. Não concluiu Economia. Foi fazer mestrado na França e voltou ao Brasil para o doutorado. Hoje, além de vice-diretor da Faap e professor, tem um escritório especializado em Direito Administrativo e empresarial. Participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer e Maurício Cardoso.
Leia a entrevista
ConJur — As regras criadas para proteger a economia funcionam?
Marcos Vinícius de Campos — Na maior parte dos casos sim. Temos hoje uma regulação mais setorial, porque as leis concorrenciais não servem para os setores que têm política pública específica. É o caso das regras das agências reguladoras, criadas porque empresas públicas foram privatizadas. O Estado criou uma agência reguladora, que implementou a política pública destinada para aquele setor. Então, para determinados setores, as leis criadas para proteger a economia não são 100% aproveitadas.
ConJur — Os setores regulados foram escolhidos pela natureza dos serviços prestados ou pela situação de monopólio?
Marcos Vinícius — Pelas duas coisas. Existe a regulação da concorrência e a regulação setorial. Antes das privatizações, o Estado fazia a fiscalização, mas não dava conta. Agora, com as agências, controla as operações empresariais à distância. A Agência Nacional de Saúde foi criada para regular as operadoras de planos de saúde. O Congresso definiu o que é plano de saúde na Lei 9.656/98. O empresário precisa da autorização da ANS para vender planos e aumentar seus preços. Aí está a interferência do governo nas decisões empresariais objetivas.
ConJur — É também uma forma de exercer controle sem investimento.
Marcos Vinícius — O governo estabeleceu as agências fiscalizadoras, mas a natureza da intervenção não mudou.
ConJur — Há muita confusão entre o que cabe ao Cade e o que cabe ao Judiciário analisar?
Marcos Vinícius — Há condutas ilícitas que a própria lei tipifica. Mas tanto o Cade quanto o Poder Judiciário podem processar e julgar casos administrativos. Então há uma confusão muito grande. Não existe lei que determine exatamente os limites de atuação do Cade. Ou que estabeleça: “Judiciário, restrinja-se a isso”. É muito complicado. A sociedade gasta uma fortuna com o sistema administrativo e tem juiz que ainda não concorda com o conceito de mercado que o Cade classificou e dá liminar para suspender os efeitos da decisão.
ConJur — A organização da esfera administrativa de solução de conflitos é relativamente nova, não?
Marcos Vinícius — Novíssima. Nos Estados Unidos, o sistema foi instalado na década de 30. O Brasil começou a montar sua estrutura administrativa há 13 anos. Estamos em um processo histórico diferente, que gera descompasso, insegurança e problemas concretos. Advogados e juízes não entendem as regras do Direito Administrativo, porque não pesquisam, não lêem sobre o tema. Como entender as grandes fusões julgadas pelo Cade — Nestlé, Garoto, Ambev? Qual o papel do governo quando autoriza um órgão da administração a decidir se aprova ou não uma fusão, que implica na verdade no que chamamos de política industrial? Deveria um órgão como o Cade cuidar da política industrial do país? O Judiciário precisa entender as regras da área administrativa.
ConJur — Atos de concentração na área bancária devem ser aprovados pelo Cade ou pelo Banco Central?
Marcos Vinícius — O Bacen implementa a política bancária. Mas o Cade precisa entrar na conversa, porque vai ser o antagonista. É o órgão que vai defender a idéia da concorrência. O senador Antônio Carlos Magalhães apresentou ao Senado projeto de lei para que o Cade seja ouvido nos atos de concentração bancária. Mas o Banco Central não quer, porque vai perder poder.
ConJur — E qual o efeito prático disso?
Marcos Vinícius — Logo teremos um ou dois bancos e a concorrência vai perder muito com isso. Fica ainda mais grave quando colocamos na discussão os não especialistas: juízes e consumidores. Aí o sistema vira um caos. A Lei 8.137/90 determina que dominar o mercado é crime contra a ordem econômica. Mas como é que o mercado pode ser dominado, se não há definição do que é o mercado? O acordo de preço de três postos em um bairro pequeno é crime de cartel? Se não houver nenhum efeito para o mercado, não é crime. Aplica-se uma teoria jurídica difícil, a per se ilegal. Ou seja, há certas condutas sobre as quais não cabe discussão sobre razoabilidade, que é chamada regra da razão.
ConJur — E que não é a lei que resolve.
Marcos Vinícius — Não. Fui a uma reunião com juízes federais, na qual discutimos a repressão aos crimes contra a ordem econômica. A atuação dos juízes é absolutamente bem vinda nesta área, até porque eles irão atuar de qualquer forma. Muitas vezes ao mesmo tempo, quando se apura administrativamente e criminalmente determinada conduta. Mas, se estão no baile, precisam aprender a dançar. Não podem tomar decisões complexas sem usar metodologias, sem usar o que já se produz e o que já é consenso ao menos na literatura de Direito Econômico. Os juízes precisam fazer uma espécie de acordo de cooperação, trocar informações. Juiz federal não pode tomar decisão sem fundamentar e destruir quatro, cinco anos de trabalho com uma canetada. Isso gera instabilidade e insegurança.
ConJur — Qual o modelo, por exemplo, de uma sociedade mais amadurecida nessa questão?
Marcos Vinícius — Os Estados Unidos. Só que os Estados Unidos têm uma economia 12 vezes maior do que a nossa. Os EUA já protegeram a pequena empresa, o livre comércio e criaram mecanismos para evitar crises econômicas. Na prática, eles sempre fizeram protecionismo. O problema hoje é combinar a política daquele país com o momento econômico.
ConJur — No Brasil, o que é mais importante para a defesa da concorrência?
Marcos Vinícius — Diminuir o custo e dar efetividade para que certas condutas sejam de fato punidas. Mas isso não pode ser feito por meio da criminalização. Se for assim, é mais fácil colocar um delegado da Policia Federal na Secretaria de Direito Econômico e tudo vira um problema de escuta telefônica. O Brasil tem muito cartel. Mas o único antídoto é a abertura comercial. Um país como o Brasil não pode se dar ao luxo de dizer que certas condutas não podem ser praticadas. Qual é o problema de ter um cartel de crise? Qual o problema de ter a cooperação entre as empresas? Nenhum. As empresas devem cooperar entre si. A União Européia, por exemplo, estabelece vários parâmetros de cooperação sobre política de qualidade de produto e sobre crédito ao consumidor. Tudo que se refere a regulação econômica e regras empresarias ainda está em transição. Defendi um caso em que meu cliente foi condenado pelo juiz criminal por formação de cartel e o Cade sequer recebeu o processo. O juiz não ouviu ninguém e decidiu: “pelos depoimentos, condeno a cinco anos e meio...”. E acabou.
ConJur — Neste caso a empresa recorre a quem?
Marcos Vinícius — Ao Tribunal Regional Federal, ao Superior Tribunal de Justiça.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que, enquanto não se esgotar o processo na esfera administrativa, não pode haver condenação criminal por sonegação de tributos. O STJ segue a mesma orientação?
Marcos Vinícius — Deve seguir, já que o entendimento do Supremo deve virar inclusive Súmula Vinculante.
ConJur — Já existem mecanismos de cooperação entre Judiciário e Administrativo?
Marcos Vinícius — Os primeiros passos já foram dados. Sou diretor do Instituto Brasil de Estudo da Relações de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, o Ibrac. É um instituto criado por técnicos, advogados, economistas e empresários que promove seminários para juízes e conselheiros do Cade. O que temos é a sociedade civil criando mecanismos de aprendizado coletivo.
ConJur — Por ser uma área nova, a administrativa ainda não é bem incorporada à grade das escolas tradicionais. Faculdades de Direito como a da Faap e GV estão introduzindo um novo modelo de ensino. Como é que o senhor avalia isso?
Marcos Vinícius — Desde 1827 se ensina Direito com base no que a lei diz. A lei é resultado de um processo político e que se incorpora aos conceitos e valores do indivíduo. Esse processo de saber qual é a lei e o que a lei diz é muito complicado porque o que o aluno recebe são os valores do professor. Eu estudei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. É uma ótima escola. Mas o problema é que a faculdade não dá aos alunos os incentivos adequados positivos e negativos para que ele se seduza, primeiro, pelo conhecimento. As faculdades particulares ensinam um método de pensar o Direito a partir da realidade e não de uma descrição da realidade que é feita pelo professor. Em uma faculdade de Direito você precisa estudar de tudo, até Direito. A realidade não é jurídica. A realidade é econômica, é política. Para entender Direito Administrativo é preciso entender o Estado. Para entender Direito Criminal, é preciso ter aulas de Psicologia. Estudar Direito é ver a sociedade. A Faap oferece até aulas de teatro para os estudantes de Direito.
ConJur — As escolas privadas tem um foco de mercado mais definido.
Marcos Vinícius — Exatamente. Posso falar da Faap, porque sou vice-diretor. Nosso objetivo é receber alunos que vieram de uma elite. Então, já sabemos que há um processo natural de seleção. Temos bolsas, atraímos bons alunos e também formamos nossa elite. E formar elite é muito complicado. Nossa função não é criar técnicos do Direito. Queremos formar administradores, diplomatas, políticos, além de juízes e advogados. Não é uma formação para passar no Exame de Ordem, embora os alunos sejam obcecados por isso. O projeto pedagógico foca a internacionalização das empresas e dos investimentos. Ensina técnicas de resolução de disputa. E não apenas ensina as regras para atuar no contencioso.
ConJur — Mas as faculdades tradicionais ainda continuam com todo o prestígio.
Marcos Vinícius — É residual. São tradicionais por quê? Em São Paulo, a Faap está, com certeza, entre as cinco melhores escolas. É uma faculdade nova, com classes com 30 alunos e aulas de diversas matérias. No Direito, existe uma característica diferente dos outros cursos, onde é raro encontrar um professor de Direito que se dedica apenas a isso. Geralmente ele é juiz, um bom advogado. Tem experiência, mas não necessariamente tem metodologia. Não adianta saber muito se você não sabe transmitir. A diferença entre Faap e faculdades públicas é a metodologia de ensino usada.
ConJur — O ensino jurídico no Brasil vai mal?
Marcos Vinícius — Péssimo. E pior ainda é dizer que o mercado vai resolver esse problema. O mercado não vai resolver esse problema porque não há condições. É óbvio que em 10, 15 anos, muitas faculdades vão fechar. Mas como vai ficar o aluno que estudou durante esse período? Não há espaço para tantas escolas. A advocacia precisa enfrentar esta questão e não vejo outro caminho, senão proibir a abertura de novos cursos de Direito. Sou claramente pró-mercado. Acredito que o Estado tenha de interferir o mínimo possível, mas nesta questão não vejo como o Estado não interferir. É preciso peneirar, avaliar com provas os alunos que estão formados. Se isso for feito, em 20 anos teremos outro cenário. Não há espaço para tanto advogado no Brasil, porque o custo de oportunidade é muito baixo.
Revista Consultor Jurídico, 27 de maio de 2007
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