Por: Eduardo Dutra Aydos, cientista político
A ‘SOLUÇÃO ARBOUR’ E O IMPEACHMENT NECESSÁRIO
a violência grassava em Kosovo, sob a supervisão leniente dos chefes militares da OTAN e da sua grande estratégia – historicamente superada, eis que ainda focada no paradigma da guerra fria e do equilíbrio do terror – a capilaridade da violência avançava de forma incontrolável. As denúncias de violações graves de direitos humanos se multiplicavam. Enquanto isso, o Presidente Slobodan Milosevic, estimulava o ressentimento popular contra os inimigos do povo, promovia o sectarismo político e distribuía afagos às suas tropas, cujas atrocidades alegava desconhecer. No auge das ações militares, em 1995, a limpeza étnica, extra-oficialmente promovida pelo governo sérvio, massacrou num único dia 8.000 homens e mulheres, crianças e velhos, em Srebrenica. Neste tempo, mais de setenta indiciados pelo Ministério Público internacional, como autores de crimes de guerra circulavam livremente nas zonas desmilitarizadas e permaneciam impunes. As forças militares do Ocidente tinham documentado, até por fotos de satélite, palmo a palmo, metro por metro, as operações militares nas áreas conflagradas. Mas foi preciso a intervenção da virtude, sob a forma do descortino e da coragem cívica de uma mulher, de nome Louise Arbour, para fazer estancar aquela sangria. Nomeada, em 1996, Promotora Chefe de Crimes de Guerra perante o Tribunal Criminal Internacional para Rwanda e a antiga Iugoslávia em Haia, ela percebeu que, para cada indiciado na planície daquele estado de violência banalizada, cinco outros lhe ocupavam o espaço. Que a multiplicação dos indiciamentos, enquanto houvesse cobertura oficial para a sua impunidade, representava uma armadilha fatal no caminho da solução necessária que só poderia ser uma paz digna. Então, foi à jugular do sistema: assumiu o risco da iniciativa, articulando secretamente a prisão de três ou quatro dos lugares-tenentes da chacina; cobrou dos chefes militares da OTAN a sua responsabilidade histórica; e pediu aos seus assessores que trabalhassem com um só objetivo, o indiciamento do mandante. Com a sua coragem e a lucidez dos seus argumentos, Louise Arbour desarticulou a leniência da OTAN e conseguiu obter de um dos seus integrantes, o chefe da Missão Militar do Reino Unido na Sérvia, a documentação necessária para a incriminação de Slobodan Milosevic. O carniceiro morreu na prisão das Nações Unidas, ainda no curso do julgamento, alegando que não era responsável pelas ações militares do seu próprio governo. Seu enterro foi acompanhado, pacificamente, por milhares de antigos seguidores. Mas a antiga Iugoslávia desapareceu das manchetes e das estatísticas internacionais de violação de direitos humanos.A ‘Solução Arbour’ não contemplou um fato isolado e único. Nem mesmo é uma novidade. Registra, a mitologia grega, que Hércules, num dos seus doze trabalhos, defrontou-se com a Hidra de Lerna – um monstro de nove cabeças que vomitava veneno e era tido como invencível, porque elas renasciam cada vez que se conseguia cortá-las. O herói percebeu, entretanto, que a sua capacidade de reprodução vinha do pântano, que o monstro defendia. Então, conta o mito, levantou a Hidra, cortou-lhe o suprimento vital, e assim a derrotou. Louise Arbour seguiu-lhe o ensinamento. Substitua-se neste relato, ‘violência genocida’ por ‘corrupção sistêmica’, e o exemplo veste, sob medida, a nossa conjuntura de crise.Assistimos, no Brasil, a demolição sistemática das instituições democráticas – dos mensalões que desmoralizam o Congresso Nacional, ao tráfico de influência política que abastarda nossos Tribunais Superiores. Essa corrupção sistêmica, instrumentaliza o hegemonismo político do partido que está no poder. E se capliarizou, atingindo, de alguma forma, todos os tecidos do organismo estatal. Muitas das suas partes já se deixaram dominar, ou cultivam reações contraditórias de rejeição e de acomodação ao próprio contágio. Já existem réus confessos e se indiciaram cerca de 100 pessoas, em apenas uma das CPIs, que esbravejam contra a moléstia. Mas nenhuma quarentena ainda lhes foi imposta. Continuam circulando impunemente e se reproduzem com celeridade, na síndrome da sua desautorização episódica e cínica, sempre seguida de afagos e desagravos, pela cumplicidade evidente da chefia do Estado. Comprova-se o peculato eleitoral do partido no poder. E nem isso estanca a sua truculência. Ao contrário, com o passar do tempo, ela se torna menos heróica e mais despudorada. Já se perseguem testemunhas na cidade. Já ocorrem incêndios no campo. E Luis Inácio – epicentro de todas essas operações – continua alegando inocência. Como se fosse possível permanecer alheio às manobras políticas do seu próprio partido e a tudo o que se passa à sua volta. Como se pudesse declarar-se irresponsável pelas ações criminosas do seu próprio governo – território pantanoso, que defende por todos os meios e onde vai buscar a força para renascer truculento, nas suas diatribes demagógicas contra as elites que o sustentam.Isso posto, convém lembrar, que os heróis não se convocam, se formam na solução do conflito em que se encontram. Não temos Hércules ao nosso lado, e nem cabe requisitar à ONU a cedência de Louise Arbour, para resolver o caso-Brasil. Precisamos acreditar que nosso herói nacional – talvez individualizado, talvez coletivo – vai destacar-se no bojo dos enfrentamentos que a causa da democracia nos reserva. Mas convém seguir a trilha da experiência cunhada pelos que nos precederam. A liderança de oposição que o Brasil necessita deve ser pautar-se por esta lucidez: (a) que estamos travando uma campanha decisiva para a sobrevivência e a consolidação da democracia no Brasil; (b) que o seu objetivo político é o bloqueio e a prevenção da escalada totalitária que promove a corrupção sistêmica das nossas instituições; (c) que o seu objetivo estratégico é a derrota do partido e do governo que a empreendem; (d) que a sua condição tática, impõe o soerguimento do monstro, cortando-se o suprimento dos ‘interesses úteis’, que abastecem a guarda do partido e do governo corruptos; (e) que, neste combate, todo o arsenal legitimado da democracia deverá ser utilizado, dando-se preferência aos artefatos de maior potencial ofensivo. Com efeito, a campanha à frente não está sendo travada entre adversários do mesmo nível: opõe lideres e partidos, que subscrevem e respeitam os marcos constitucionais do conflito político, a um projeto de poder que, por sua vez, não reconhece estes limites, tanto que as suas lideranças maiores – seu partido e seu governo – aberta e criminosamente os ultrapassam e corrompem. Desde o dossiê Cayman ao dossiê de Furnas, está visto que os inimigos da democracia no Brasil não hesitam em se utilizar da fraude documental. Desde os processos judiciais movidos contra jornalistas e intelectuais gaúchos pelo PT-RS, aos processos movidos contra a grande mídia paulista por denunciar o envolvimento do PT no escândalo do mensalão (e contra o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, por considerar o PT um partido corrupto), está visto que os inimigos da democracia no Brasil não respeitam o direito fundamental de expressão e de opinião e, nem o princípio democrático da solução destas divergências de cunho ideológico no contraditório aberto da esfera pública. Desnecessário estender-se mais, no rol das suas violações à dignidade do processo político. Não respeitam privacidades, não respeitam biografias, não respeitam limites ou acordos que não lhes sejam unilateralmente convenientes, como não respeitam a Constituição. A experiência de uma ‘oposição calejada’, porque já foi alvo dessa truculência, induz o reconhecimento desta contingência: que todos recursos do arsenal político da democracia deverão ser utilizados no seu enfrentamento. A investigação criminal do Presidente da República e de sua família, nos marcos da constitucionalidade vigente, não pode, pois, ser descartada por qualquer sentimento pueril de ‘noblesse oblige’, nem pelo excesso de auto-confiança na eficácia da solução eleitoral para a crise que aí está. É preciso derrotar o PT, sim. Mas, também, é necessário construir essa derrota eleitoral, pela mais clara e inequívoca proscrição dos seus métodos e do seu modo de fazer política... ainda que isso signifique o “impeachment” do Presidente da República e a cassação do registro de um partido que, além de corrupto, é inimigo da democracia e desleal à Constituição. A liderança que a Nação exige, face ao totalitarismo emergente, deve, sobretudo, precaver-se. Corre o risco de ser trucidada, pelo monstrengo ressuscitado na antevéspera do pleito, por qualquer sorte de manipulação sórdida, ilícita, imprevisível e até inimaginável. O impeachment de Luis Inácio e a imposição de qualquer sorte de quarentena ao seu partido – minimamente às suas lideranças diretamente envolvidas na corrupção sistêmica – não se apresentam, pois, como alternativas possíveis, mas como contingências necessárias de um jogo político, cujo desvirtuamento ultrapassou todos os limites da tolerância democrática.É uma condição de passagem, neste sentido, a identificação e o isolamento dos “interesses úteis”, que podem garantir sobrevida, quiçá mesmo recuperação, à República do Mensalão. Um sistema de poder é sempre um fenômeno complexo. Envolve graus diferenciados de conhecimento e intencionalidade, de possibilidades de ação e responsabilidade. E pela sua corrupção implica sempre uma combinação diferenciada de dolo e de culpa. Não se pode, por isso mesmo, condenar a todos os alemães pelos crimes do nazismo; nem a todos os nazistas na mesma intensidade. Como não se pode, também, condenar todos os petistas pela corrupção do PT; nem todos os seus dirigentes na mesma intensidade. Malhar neste sentido, além de responder uma violência com outra, de igual ou maior injustiça, no presente caso, representa um convite ao suicídio político da oposição constitucional. Há sempre, portanto, uma linha de corte a ser definida, quando se pretende cobrar responsabilidades por crimes de Estado – como é o caso da corrupção sistêmica. A boa arte política – do possível e do desejável – impõe essa limitação: sob pena de inviabilizar-se a restauração da ordem constitucional. É no manejo dessa linha imaginária, entre a impunibilidade das massas e a responsabilização dos líderes, entre o indiciamento por dolo e aquele por culpa, entre o rigor da pena e a mera reparação do dano, que se deve sinalizar e oportunizar o desinvestimento dos “interesses úteis” – dos militantes ingênuos e dos empreendedores mercenários, que sempre gravitam em torno de qualquer tirania – até como instrumento da sua derrota. Não se trata de oferecer-lhes, pura e simplesmente, carona no bonde da nossa história. Mas de neutralizar seu potencial de apoio, magnificando os riscos da sua viagem na canoa furada do governo corrupto. E, sobretudo, de desencorajar o seu refluxo e sobre-investimento nos prospectos do governo fragilizado. Penso que esta preocupação deveria constituir a base para a elaboração de uma ‘pauta da oposição calejada’ neste ano eleitoral [tema para um outro artigo, cujo esboço já trato de alinhavar]. Nos limites deste texto, realço que os debates sobre cassações de mandatos e, mais recentemente, sobre o relatório da CPI dos Correios, são sintomáticos deste desafio. Escancarou-se ao observador atento, o perigoso jogo de acomodação, que o PT ainda promove no âmbito do Congresso Nacional. O relator da CPI, Osmar Serraglio, no olho deste furacão, parece ter feito o que pôde. Optou por declarar a existência do crime maior – contra a instituição do Poder Legislativo – que é a ocorrência do “mensalão”. Mas para sustentá-la, embora indiciando dois lugares-tenentes dessa conspiração – José Dirceu e Luiz Gushiken – absteve-se de indiciar o maior beneficiário do ilícito – e seu fiel avalista, por toda a leniência do seu governo, na apuração das respectivas responsabilidades: o Presidente Luis Inácio. Foi uma vitória de oposição. Não se consegue avaliar, ainda, qual a sua duração e conseqüência. Mas, olhando pelo lado da extensão das investigações, com cerca de 100 indiciados na ‘arraia meúda’ – entre os tomadores de dinheiro, seus intermediários e fornecedores – e em face do tempo que resta a esta Legislatura, pode-se ter incorrido no erro dos predecessores de Luise Arbour em Kosovo. Há sempre o risco da pizza no fim do túnel, quando se coloca em cheque a base de sustentação de um sistema corrupto, sem antes neutralizar o seu centro de comando e defesa. Quanto menos, porque o tempo necessário para processar e punir os indiciados pela CPI, será muito maior que o tempo necessário para a reconstituição e a consolidação do valerioduto, ou de qualquer outro esquema de corrupção institucional que venha substituí-lo. Fossem, apenas, indiciados pela CPI os três mandantes: Dirceu, Gushiken e Lula [e remetidos os autos para análise criminal e indiciamentos secundários pelas instâncias judiciárias] a história já estaria sendo escrita num outro patamar de conseqüências.Verdade, que o indiciamento de Lula chegou a ser suscitado pelo relator Osmar Serraglio, mas como argumento de barganha política, contra a apresentação de um relatório alternativo pelo PT. Caso esse partido insistisse na tese da desqualificação do crime maior do “mensalão”, tipificando, tão somente a ocorrência do crime menor do “caixa dois”; esta conseqüência, ao ver de Serraglio, haveria de atingir o Presidente Lula. Porque a CPI coletou provas que o dinheiro depositado em conta de Duda Mendonça financiou a campanha Presidencial. O relatório alternativo do PT, era, com efeito, um tiro no próprio pé.O fato relevante, não obstante, é que uma coisa não exclui a outra: o indiciamento da ‘arraia meúda’ pelo crime do “mensalão”, não exclui o indiciamento do Presidente Lula, pelo delito do “caixa dois” da sua campanha. Mais do que isso, qualquer uma das duas hipóteses, efetivamente, atinge o Presidente da República. Se o crime menor, que é eleitoral já permite o indiciamento Lula; não se concebe que o crime maior, que é de Estado, minimamente de Governo, não implique – e de forma ainda mais incisiva – na responsabilidade do respectivo Chefe. Presidencialismo é isso aí – autonomia do Poder Executivo, mas com a responsabilidade política da sua Chefia. Desde algum tempo se sabe e a OAB Nacional – depois de tocada nos seus brios pelos argumentos e os fatos novos da conjuntura – deixou vazar relatório ainda tímido, por impublicado, que as condições técnicas, tipificando crime de responsabilidade do Presidente da República, já estão dadas. Bem entendida a mensagem deste texto, a abertura do processo de ‘impeachment’ de Luis Inácio, e o esforço consistente da sua viabilização política, além de uma responsabilidade moral perante a Nação, é um recurso imprescindível da ‘oposição calejada’, na campanha pela derrota eleitoral do projeto totalitário do Partido dos Trabalhadores.
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