Villas-Bôas Corrêa
O destrambelhado Jânio Quadros armou duas crises emendadas, de tosco formato provinciano, modelo que dera certo no trânsito pelo governo de São Paulo, mas que deixou para o país a trágica herança de décadas de desajuste.
A bem dizer, foram duas traições no mesmo embornal da mania do golpe para o exercício do poder sem os embaraços do Congresso e da imprensa livre. No lance preparatório traiu o seu companheiro de chapa, o impecável ex-governador de Minas, Milton Campos, das melhores figuras humanas da nossa história republicana.
Como repórter que acompanhou a correria pelo país na caça ao voto, a bordo de um lerdo e confiável DC-3 da finada Varig, testemunhei a farsa das deferências do comediante, nos rapapés de seu jeito exótico ao mineiro que cumpria a missão recebida, enquanto tramava na sombra o apoio à maroteira do Jan-Jan, o movimento popular, fabricado em casa, do Jan-Jan, que por sua vez entregava a inviável candidatura do marechal Teixeira Lott às traças da derrota certa.
Crise em dose dupla. A renúncia surpreendente, como chilique depois de noite de insônia, comunicada em curto documento em linguagem rebuscada, atirou o país no mais grave momento da sua história, a um passo de um confronto militar que racharia as Forças Armadas, deixando seqüelas que só o tempo cicatrizaria.
A deslealdade que derrotou Milton Campos se não emplacou o golpe do retorno incondicional, na recaída a uma ditadura de fato, montou o cenário para a crise da posse do vice Jango Goulart e do seu frágil governo, com a seqüência de turbulências que alcançaram os quartéis. Jango jamais avaliou o que custou a sua posse, enquadrada na experiência parlamentarista que era a sua tela protetora. Com a antecipação do plebiscito, em campanha regada por milhões de origem suspeita, o enterro do parlamentarismo desembocou no golpe militar de 1° de abril de 1964 com a ditadura do rodízio dos cinco generais presidentes, com fôlego de gato para quase 21 anos de um balanço contraditório: êxitos inegáveis na economia, com fases de grandes obras – de que é exemplo a administração do ministro Mario Andreazza, nos Transportes, nos dois anos e meses do mandato do general Médici. que riscou o mapa do país de estradas, construiu a ponte Rio-Niterói e, do lado do avesso, um catastrófico desempenho na área política. Ditadura, à paisana ou fardada, no fundo são irmãs siamesas.
O AI-2 do governo inaugural do general-presidente Castelo Branco liquidou com os partidos criados na alvorada democrática da Constituição de 1946 com as sobras das rivalidades municipais, que sobreviveram ao massacre.
Um erro crasso e sem remédio e que resistiu a todos os remendos e mesinhas e marcha na cadência da crise ética que avilta o Poder Legislativo, com a decadência dos costumes e a gastança do dinheiro público para a farra das mordomias, das vantagens e de trampas como a verba indenizatória e os R$ 61 mil mensais para contratar assessores para os gabinetes individuais de senadores e deputados, inclusive dos campeões das ausências.
O Congresso que empurra para o amanhã que nunca chega, a reforma política moralizadora, tão imprescindível quanto inviável é o que convém ao governo, a todos os governos. A virtual inexistência de partidos que se dêem ao respeito, que não se lambuzem com o mel dos escândalos da maior safra de todos os tempos – desde a chegada de Cabral ao segundo mandato do presidente Lula que se auto-elogia nos improvisos diários como o detentor de todos os recordes de realizações que refundam o país – bloqueia as tímidas tentativas moralizadoras.
E o governo e o Congresso vão levando a democracia tão duramente conquistada para a vereda do risco. E que é assunto para mais uma conversa.
Fonte: JB Online
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