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domingo, janeiro 02, 2022

A impunidade e a fantasia das narrativas




A percepção da corrupção pelos famintos, miseráveis e pessoas que perderam a sua condição social causa indignação moral e a busca de uma saída social que possa ser politicamente viável. 

Por Denis Rosenfield (foto)

A corrupção no Brasil tornou-se um problema institucional, isto é, diz respeito às instituições, a seu modo de funcionamento e ao cumprimento ou não de sua finalidade própria, a de estarem voltadas para o bem público. Estamos diante da acepção de República, de bem coletivo, e não de seu aparelhamento por grupos estamentais, corporativos, quando não diretamente criminosos. Não importa que uns se digam de esquerda ou de extrema direita, quando isso nada mais significa senão narrativas ideológicas utilizadas para justificar o crime e/ou o aparelhamento das instituições.

O espetáculo dos últimos meses é, nesse sentido, aterrador. Todos os condenados pela Lava Jato estão sendo “inocentados”, “absolvidos” ou como se queira chamar a anulação de condenações pelas mais diferentes razões, sempre em busca de uma justificativa formal, qualquer que seja. O objetivo parece ser um só: a anulação da Lava Jato e da luta contra a corrupção. Para que isso seja feito, basta a contratação de caras bancas de advogados, que, por intermédio de incessantes recursos, conseguem, ao fim, a “absolvição”de seus clientes. As provas terminam na cesta de lixo. A Justiça tarda, mas sob a forma da mais severa das injustiças. Réus confessos são soltos, seus processos são anulados, delatores são “inocentados”.

Ministros de tribunais superiores chegam a essas “conclusões” após vários anos, frequentemente contra sentenças anteriores deles mesmos, em uma espécie de revelação religiosa de profundas repercussões terrenas. Repercussões morais, pois os tribunais superiores são tidos por inconstantes, contraditórios, sem nenhuma adesão a princípios; repercussões institucionais, pois mostram que o crime compensa; e repercussões políticas, pois alteram profundamente o cenário eleitoral, com um ex-presidiário ocupando hoje uma posição central no tabuleiro partidário. A confusão é total e a insegurança jurídica é completa.

Estabeleceu-se uma identidade fictícia, obediente a interesses partidários, entre a Lava Jato e a luta contra a corrupção. Não houvesse o PT perdido a memória, poderia se lembrar que liderou a luta contra a corrupção, apregoando a ética na política. Enquanto tirou dela proveito, guardou as aparências até ser alvejado pelo mensalão, pelo petrolão e julgado pela Lava Jato. Não houvesse o presidente Bolsonaro traído suas “ideias” e “promessas”, como o combate ao toma lá dá cá, à corrupção e ao “sistema político”, e sucumbido ao Centrão e às suas negociações, o país seria outro.

Petistas e bolsonaristas, ao se insurgirem contra a Lava Jato, na verdade sinalizaram o que fizeram: a renúncia à luta contra a corrupção. Agora, procuram normalizar essa atitude que, a bem dizer, tem tudo de anormal. Os seus advogados certamente dirão que a operação não seguiu os seus devidos trâmites legais; seus parlamentares de distintos horizontes se insurgem contra os seus supostos excessos, não sem antes apostarem em candidaturas que lhes tragam tranquilidade em suas operações. Ou seja, a Lava Jato não está sendo negada por supostos ou eventuais excessos, mas para ser relegada a uma posição secundária na luta contra a corrupção. Não faltará quem diga que essa bandeira não faz hoje parte da pauta eleitoral. Não aparece entre as prioridades pelo fato de a pandemia ter tido resultados desastrosos e de a atual política econômica estar provocando fome, baixa renda e subemprego, além de baixo crescimento. Contudo, essa sua posição secundária é, ela também, fruto do ocultamento intencional do qual foi objeto. 

Basta que atores políticos saibam enfrentar essa questão, para que ela volte ao proscênio.

Note-se que, do ponto de vista político, o escamoteamento dessa falta de moralidade pública, de desvio de recursos públicos, foi deslocado para o embate eleitoral, sendo o ex-juiz Sergio Moro o seu alvo, precisamente por postular a Presidência da República. Procura-se não falar da corrupção, mas em atacar o juiz que foi o seu símbolo. É como se o problema da corrupção estivesse, assim, magicamente resolvido. Tem-se, dessa maneira, o objetivo de neutralizar politicamente qualquer veleidade moral, como se a ética não fosse atualmente um problema político. Curioso nesse processo é que se atribui a um juiz de primeira instância a responsabilidade completa de um processo judicial que teve nele um pontapé inicial.

Na verdade, ele se situa no início de toda uma apuração que envolveu promotores, procuradores, outros juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores. O TRF-4, um dos mais sérios e ágeis tribunais do país, reiterou e confirmou as sentenças das etapas iniciais. Aprofundou mesmo algumas penas. O STJ seguiu no mesmo diapasão, assim como o STF. Se houve posteriormente mudanças nos tribunais superiores, com algumas decisões monocráticas, tais atitudes não apenas puseram em questão o ex-juiz Moro, mas todo o edifício da Justiça brasileira. É ela que sai desacreditada. E por mais inacreditável que isso pareça: em nome da Justiça.

Evidentemente, para os pobres e desfavorecidos, tal “Justiça” não vale. Eles não possuem recursos para bancar ricos advogados durante anos. São muito frequentemente presos por qualquer crime menor, não podendo nem apresentar recursos de forma conveniente. Sucumbem nas primeiras instâncias! O que dirão eles lendo, vendo e ouvindo as “absolvições” dos ricos e privilegiados, esses aos quais a lei não se aplica? O crime para eles compensa, enquanto para aqueles, não há recompensa nenhuma senão a condenação e o cárcere. E não deixa de ser tampouco paradoxal que o partido dito dos trabalhadores faça com afinco esse jogo contra os trabalhadores.

Imaginem o que pode bem sentir uma mãe ou pai de família, com seus filhos passando fome aos seus olhos, não podendo ir à escola ou o fazendo muito precariamente, sem vislumbrar qualquer futuro, vendo na televisão bilhões serem desviados, parlamentares abocanhando milhões em emendas parlamentares e um presidente dizendo que nada pode fazer, perdido em moinhos de vento contra as vacinas, as urnas eletrônicas, e lutando pelo armamento da população, que nem dinheiro tem para comprar coisa nenhuma, muito menos revólveres e munições. Claro que o presidente não tem o charme e a ironia de Dom Quixote, nem a sabedoria de Sancho Pança.

A percepção da corrupção pelos famintos, miseráveis e pessoas que perderam a sua condição social causa indignação moral e a busca de uma saída social que possa ser politicamente viável. No entanto, muitas vezes a urgência da fome, da doença e do abandono dos filhos é de tal monta que os cantos de sereia do populismo encontram acolhida. Pelo prato do dia, sem saberem, hipotecam o seu futuro. A luta contra a corrupção permanece, porém, um problema precisamente por suas implicações sociais e sanitárias. Até recentemente, a CPI da Covid, com senadoras e senadores engajados nas averiguações, mostrou a corrupção se infiltrando em decisões políticas graças à ação de meliantes de fora e de dentro do aparelho estatal – uma das senadoras, Simone Tebet, devido a seu posicionamento, surgiu também candidata a presidente da República.

A corrupção corrói a moralidade pública, fazendo com que a percepção dos cidadãos os faça desacreditar dos políticos. Assim, soluções autoritárias para os incautos e desfavorecidos pode terminar como um caminho de efeitos nefastos. A corrupção produz o desvio dos recursos públicos que poderiam ser utilizados em programas sociais e sanitários, aliviando os mais necessitados. A corrupção destrói o tecido constitucional, esgarçando os seus valores e produzindo a corrosão da democracia. A corrupção e o seu sucesso pela não punição mostram que o crime, infelizmente, compensa para os ricos e privilegiados.

Pode, dessa maneira, uma sociedade encontrar o seu futuro? Pode ela enfrentar os problemas do seu presente?

Revista Crusoé

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