Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
O julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade intentada pela Procuradoria Geral da República, que pretendeu fulminar de ilegalidade o artigo 5.º da Lei 11.105/05 (clique aqui), conhecida por Lei de Biossegurança, trouxe não só uma nova visão ética da leitura jurídica que se faz a respeito do começo da vida, como também inovou na instrumentalização utilizada pela Corte Suprema para exarar seu entendimento.
A ação, em resumo apertado, abraçava a tese de que o embrião, desde sua concepção, é representativo de vida e, como tal, goza do privilégio e direito de ter preservada sua dignidade. Desta forma, a liberalidade legislativa conferida no artigo guerreado da referida lei, que possibilita a utilização de embriões inviáveis para fins de pesquisa e terapia, congelados há três anos ou mais, com a anuência dos genitores, seria uma forma de contrariar a ordem jurídica e colidir com o princípio da dignidade humana, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos exatos termos do artigo 1.º, III, da Constituição Federal (clique aqui).
Pela primeira vez na história do Supremo Tribunal Federal foi designada uma audiência pública na qual foram ouvidos vários profissionais que desfilaram suas idéias e pensamentos relevantes nas áreas da medicina, direito, biologia, bioética, antropologia, sociologia, religião e várias outras, com a finalidade de reunir múltiplos pensamentos, para que a Corte Maior tivesse condições de armazenar subsídios para um julgamento mais condizente com a lei e com a consciência política e social do povo brasileiro. Com toda certeza, mais uma vez, em razão de matéria estreitamente vinculada à communis opinio doctorum será convocada audiência pública para o julgamento da ação que discute o aborto de feto anencéfalo, prevista para agosto deste ano.
Também a legitimação extraordinária do "Amicus Curiae", de origem no direito britânico, emprestou relevantes informações técnicas e científicas a respeito da matéria que estava sendo discutida, transformando-a em assunto mais palpável e mais próximo daqueles que estão distantes da biotecnologia.
É muito difícil definir o início da vida, tarefa árdua que coube à Suprema Corte. A própria Constituição Federal silenciou-se de forma lacônica e talvez até propositadamente, em definir na garantia do direito à vida, o termo inicial da personalidade da pessoa humana. Na trilha do mesmo silêncio caminhou o novo Código Civil (clique aqui), que, apesar de inovações introduzidas, não disciplinou o início da personalidade humana O ser humano, que ainda trilha pelos caminhos obscuros da ciência e pesquisa, está distante do nosce te ipsum, lema de Sócrates, inscrito no Oráculo de Delfos. Somente agora ensaia os primeiros passos na decifração do DNA recombinante e faz rápidas incursões pela área da reprodução assistida, onde encontra contato mais próximo com o material embrionário.
É conveniente deixar claro que a Lei de Biossegurança permitiu a utilização de embriões humanos produzidos por inseminação in vitro, que não fossem utilizados no procedimento de procriação, ou que sejam inviáveis para essa finalidade, além de estarem congelados há três ou mais anos, com a aquiescência dos genitores. A lei exige o consentimento dos genitores em razão da finalidade específica da inseminação, que é a procriação. Afasta, portanto, qualquer outra hipótese de utilização de embriões humanos. Quer dizer, nem se cogita de se colher o sêmen do homem e óvulo da mulher para realizar a inseminação in vitro com outra finalidade. A permissão é para utilização do material excedente, inviável ou sem chance de alojamento no útero materno.
O descarte do material embrionário, segundo os votos das ministras Ellen Gracie e Carmen Lúcia, caracterizaria a formação do "lixo humano", daí ser preferível a utilização para fins de pesquisa e terapia.
O julgamento da Suprema Corte afastou a discussão escolástica, relegou interdições religiosas, abandonou conceitos científicos e enveredou somente pela área do Direito, definindo, com propriedade e coerência do pensamento jurídico, o início da vida, no estado laical.
O relator da Ação de Inconstitucionalidade, ministro Carlos Ayres Brito, em extenso e fundamentado voto, decidiu que a vida humana é confinada a duas etapas: entre o nascimento com vida e a morte encefálica, período em que a pessoa é revestida de personalidade jurídica, que a ela confere direitos e obrigações na vida civil. Evidenciou ainda o ministro julgador que o thema probandum estava ligado aos embriões congelados e que não serão utilizados. "O único futuro, sentenciou ele, é o congelamento permanente e descarte com a pesquisa científica. Nascituro é quem já está concebido e que se encontra dentro do ventre materno. Não em placa de petri". Enfatizou, finalmente, que "embrião é embrião, pessoa humana é pessoa humana e feto é feto. Apenas quando se transforma em feto este recebe tutela jurisdicional".
Os demais Ministros que se guiaram pelo voto do relator também deixaram transparecer que a vida tem início in ventre e não in vitro. O locus definidor passou a ser intra-útero, casulo acolhedor do embrião, proporcionando a ele todas as condições para seu desenvolvimento. Extra-útero, não passa de um conjunto de células, que, por si só, não tem condições de progressão para atingir a vida. Habemus legem, pelo menos na interpretação do STF.
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*Promotor de Justiça aposentado. Advogado, São José do Rio Preto
Fonte: MIGALHAS
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