Por: Pedro do Coutto
Li há alguns dias numa coluna da "Folha de S. Paulo" - está na internet - que a direção da Rede Globo pretende suspender o "Linha direta" que vai ao ar às quintas-feiras e, sem dúvida, figura entre os programas de melhor qualidade da emissora. Incrível destacar o "Big brother" e cortar o LD, inclusive com boa audiência para o horário. Se confirmado o corte, terá sido um equívoco grave. Mais que isso: um absurdo.
Há 54 anos no jornalismo, infelizmente, me acostumei a absurdos, a começar pelos que aconteceram, por exemplo, no "Correio da Manhã", jornal em que trabalhei. O "Linha direta" focaliza (ou focalizava) muito bem o eterno conflito humano que se desloca para as investigações policiais e daí para as decisões judiciais. Dois campos que, no mundo todo, em todas as épocas, motivaram obras extraordinárias. Não só livros de grande repercussão, mas filmes de altíssima qualidade também. Para citar um exemplo de sucesso duplo, total, nos dois campos, aí está o "Código Da Vinci" do jornalista Dan Brown. A vida e a arte convergindo.
Há uma infinidade de romances e contos, de um lado, e de filmes, de outro. No meio, peças de teatro como as inspiradas nos textos de Agatha Christie, a grande dama da história policial. São, no fundo, a fusão da reportagem e do vôo livre que caracteriza e realça a arte, síntese da realidade com a ficção. Pois os autores têm inevitavelmente sempre que partir de um ponto. O que torna muito tênue a linha que separa um plano do outro. Separa? Ou complementa? Tenho dúvida.
"Linha direta", acentuado pela atuação impecável de Domingos Meireles, sempre levou para a tela da principal rede de TV do País reportagens muito importantes, elucidativas até. O crime do Sacopã, ocorrido em abril de 52, uma delas. O acusado, tenente Jorge Alberto Bandeira, daquele ano até 2006, quando faleceu, sempre afirmou inocência. Muito bem. Quando Meireles convidou-o para dar seu depoimento, recusou.
Ficou no ar uma confissão tácita. O que não é suficiente para esclarecer o mistério em torno dos caminhos percorridos e pela convergência dos personagens envolvidos. Mas este é outro assunto. Outra matéria excelente, a que focalizou o terrível labirinto do cabo Anselmo. O crime da mala, ocorrido na década de 40. O assassinato do advogado Stélio Galvão Bueno pela própria mulher. A morte do cartunista Roberto Rodrigues, irmão de Nelson, na redação do jornal "A Crítica", de seu pai, por Sílvia Tibau.
Além destas, uma série de outras histórias que sempre receberam um tratamento de nível, tanto no que se refere à apresentação, quanto pela qualidade da imagem e das simulações feitas por atores pouco conhecidos, exatamente para conduzir a um processo semelhante ao do cinema-verdade. Processo que notabilizou Roberto Rossellini, notadamente com "Roma cidade aberta": o clássico "Paisá"; "O general de la Rovere". Todos com base na presença do nazismo na Itália e suas conseqüências no após guerra. "Roma cidade aberta", que tem Fellini como roteirista, o que poucos sabem, foi realizado ainda em meio a combates entre as forças militares e civis que lutavam pela cidade. O LD seguiu esta trilha. Percorreu muito bem o caminho.
Isso de um lado. De outro, contribuiu para a elucidação de uma seqüência de crimes até então insolúveis e para a prisão de criminosos que se encontravam foragidos da Justiça. Suas faces eram projetadas diante da multidão do outro lado da tela. Foram encontrados e presos.
A violência, a paixão, o ciúme, o ódio, o roubo, claro, fazem parte da tragédia humana. A pilhagem também. As figuras criminosas são de todas as épocas. Os conflitos humanos, também. Obras de arte definitivas foram produzidas a partir deles e com base neles. Estão tanto em Skakespeare quanto em Howard Koch, autor e roteirista de "Casablanca". Encontram-se em Dias Gomes, em Janete Clair, em Manoel Carlos, em Aguinaldo Silva. Situam-se nos romances de Alexandre Dumas. Os "Mosqueteiros" são para sempre. O western de John Ford, também.
Sem o conflito e o confronto é impossível fazer-se obras de arte. Como é igualmente impossível escrever-se a história. Seja das cidades, dos estados, dos países, do próprio universo. História? Lembremo-nos da divisão magistral de Marshall McLuhan: a era do relato, que antecede a imprensa de Gutemberg, que surgiu em 1440, e a do registro que a sucede. A cerca de 200 anos surgia a fotografia. Cem anos depois, o cinema. Na década de 1930 começava a televisão.
Hoje, com a internet, a pesquisa se amplia e consolida. Todas estas etapas pertencem ao processo da comunicação. Com os textos e as imagens, os personagens e os fatos tornam-se cada vez mais expostos. Nem por isso os conflitos desapareceram ou diminuíram.
Por isso, se a Globo cometer o erro de retirar o "Linha direta" do ar, o registro dos dramas e dos impasses se enfraquece, da mesma forma que o limite entre o legal e o ilegal na consciência coletiva. Será como deixar uma estante vazia, numa decisão que inclusive contradiz com os seriados da televisão a cabo que se baseiam em fatos reais que terminaram em crimes. Não se deve esquecer que é a realidade que inspira a ficção e não a ficção que inspira a realidade.
Afinal de contas, como digo sempre, ninguém até hoje escreveu algo que não tenha acontecido. O jogo das situações e das palavras é outra coisa. E a televisão, como o cinema, reflete o comportamento humano. "Linha direta" nunca inventou fatos. Apenas os refletiu, em nível alto, como um espelho da vida.
Fonte: Tribuna da Imprensa
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