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terça-feira, dezembro 06, 2022

Mangabeira Unger diz Bolsonaro foi um vazio e o país está no “abismo” gerencial


O problema central do Brasil é a mediocridade', diz Mangabeira Unger -  CartaCapital

O maior problema do país é a mediocridade, afirma Unger

O filósofo e ex-ministro Roberto Mangabeira Unger, 75 anos, classificou o governo de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como um “teatro” e defendeu uma inflexão no terceiro mandato do petista em relação aos dois primeiros governos – de 2003 a 2010 – na direção de uma agenda “produtivista”.

“Não dá para inferir nada nesse teatro da transição. O presidente eleito ainda não é o efetivo. As preocupações fundamentais são as mesmas. O Brasil está no abismo”, disse ele em entrevista ao Estadão.

Professor de Harvard (EUA), Mangabeira foi ministro da secretaria de Assuntos Estratégicos no primeiro mandato de Lula, mas se aproximou do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), a quem apoiou no primeiro turno da eleição presidencial de 2022. No segundo, votou em Lula, manifestando suas “preocupações”.

O sr. estava engajado na campanha do ex-ministro Ciro Gomes no primeiro turno da eleição presidencial. Como se posicionou no segundo turno?
Apoiei a eleição do Lula, mas manifestei minhas preocupações.

Como o sr. avaliou o posicionamento de Ciro no segundo turno, quando ele seguiu a orientação do PDT, mas não fez campanha para Lula?
Achei correta e coerente com a posição que ele assumiu ao longo de toda a campanha. Ciro sempre insistiu que não se podia tratar Bolsonaro e Lula como iguais e que Lula era muito superior, mas também tinha severas críticas.

Como o sr. vê um governo de transição tão amplo e diverso?
Não dá para inferir nada nesse teatro da transição. O presidente eleito ainda não é o efetivo. As preocupações fundamentais são as mesmas. O Brasil está no abismo. O nosso problema essencial é a desqualificação do nosso aparato produtivo e de nossa gente. Nós involuímos gravemente. Viemos de várias décadas em que o projeto do governo, seja tucano, petista ou os que vieram depois, era combinar a distribuição de dinheiro aos pobres com gestos de genuflexão diante dos mercados financeiros na esperança vã de que a confiança traria investimento e crescimento. Não tivemos e não temos qualquer projeto produtivista no Brasil. Enquanto não tivermos, vamos continuar onde estamos.

O que espera do terceiro mandato de Lula?
Espero uma inflexão do caminho. Que surja um novo projeto capaz de levar ao desenvolvimento brasileiro. Esse projeto precisa superar a mediocridade e o primarismo produtivo e educacional. Estamos escondidos atrás do escudo das nossas facilidades naturais em um modelo baseado no divórcio entre a inteligência e a natureza. Espero que Lula não repita o que fez antes no primeiro e segundo mandatos. E que ele abrace a causa produtivista.

Na sua visão, o que Lula fez de errado nos dois primeiros mandatos?
Foram variantes do que prevaleceu antes. De um lado, atenuar o sofrimento dos pobres com esses programas de transferência (de renda) e, de outro, buscar confiança dos mercados. Os jornais estão cheios desse discurso. Esse é o ideário que continua predominando no País: vamos acertar as contas e atenuar as dificuldades dos pobres distribuindo esmolas a eles. Nós mandamos para a China minério de ferro e soja não transformados e recebemos de volta todos os produtos do engenho humano. Isso é um desastre e o retrato do que viemos a ser. Espero que o novo governo Lula compreenda isso.

O sr. é crítico aos programas de transferência de renda?
Os programas de transferência se justificam como elemento acessório ao lado de um projeto destinado a desenvolver nossas capacitações produtivas e educacionais. Os programas não são justificados para substituir o que não temos. Não podem ocupar o primeiro plano. Falta o principal: nossas capacitações.

O presidente eleito Lula deu sinais trocados na área econômica ao chamar Persio Arida e Guido Mantega para a transição? O que espera do próximo governo nesse campo?
Não faço previsões. Seria uma insanidade. O que tenho é uma convicção programática sobre o rumo que deve ser tomado. Há necessidade de um salto em relação ao que ocorreu no passado. O debate brasileiro está dominado pela combinação do fiscalismo financista com o pobrismo, que é essa distribuição dos excedentes econômicos aos pobres. O financismo fiscalista é a ideia insana de que, ao acertar as contas dos Estados e conquistar a confiança dos mercados financeiros, provocamos desenvolvimento. Nenhum país se desenvolveu assim. Aquilo que eufemisticamente se chamou de mercados são os bancos. Temos um vácuo econômico no qual a hegemonia exercida pelo rentismo financeiro é atenuada pelo pobrismo.

Que legado Bolsonaro deixou nesses 4 anos de governo?
O mesmo legado do populismo de direita em geral. Um grande vazio. Foi uma variante da mesma coisa que estou descrevendo: uma política econômica pautada pela pseudo-ortodoxia do mercado financeiro e afrouxada no final pelo desejo de fazer transferências aos pobres. É a mesma combinação viciosa de financismo e pobrismo. Entraram ali outros elementos, como a guerra cultural como uma forma invertida da política identitária da esquerda. Nesse período tivemos uma americanização do Brasil.

O sr. vê semelhanças entre os governos Lula, Dilma e Bolsonaro?
O governo Bolsonaro foi uma variante do mesmo ideário hegemônico no Brasil deste meio século. Foi a mesma combinação de fiscalismo financista e pobrismo. Bolsonaro descobriu que era muito fácil imitar os programas pobristas. Bastava dobrar, colocar mais dinheiro em cima. Só precisava afrouxar o rigor fiscalista para poder fazer isso. Ele entrou numa guerra de símbolos com a cultura da esquerda americanizada no Brasil. Pegou a cultura identitária e inverteu. Tudo isso é um desvio.

Apoiadores do presidente Bolsonaro que contestam o resultado da eleição estão acampados na frente dos quartéis. Esse tipo de protesto veio pra ficar?
Esse populismo não tem um verdadeiro projeto institucional ou estratégico. Ele ocupou esse vazio que foi criado pelos governos tucanos e petistas, que perpetuaram o vazio. Esse populismo deixou muitos paradoxos. Por exemplo: em um governo cheio de militares, a Defesa do Brasil foi abandonada.

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