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terça-feira, agosto 30, 2022

Demônios na goiabeira estão tumultuando o pluralismo religioso de uma eleição laica

Publicado em 30 de agosto de 2022 por Tribuna da Internet

A professora Eunice de Jesus Prudente, na leitura da Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco,

Eunice Prudente, na leitura da Carta aos Brasileiros

Muniz Sodré
Folha

Desde a espantosa afirmação de uma ministra de que viu Jesus Cristo trepado numa goiabeira, a nação não tinha ouvido informação tão intrigante quanto a da primeira-dama, segundo a qual o Palácio do Planalto era antes povoado por demônios.

Até aí, o relato oscila entre o escopo sobre-humano das crenças e o das exaltações visionárias. É uma questão de afinidade privada. Torna-se pública quando ela vai mais além para garantir que o real chefe do governo é aquele já descido, não da cruz (símbolo da entrega sacrificial), e sim da goiabeira: o próprio Jesus.

TERRORISMO RELIGIOSO – Notoriamente, entidades religiosas e articulistas detectaram aí um laivo de terrorismo religioso, por contrariar o pluralismo das crenças e o princípio de laicidade do Estado. Mas o fato ganha uma conotação particular quando confrontado a um pequeno episódio da celebração democrática nas Arcadas do Largo São Francisco: a professora Eunice de Jesus Prudente, uma das leitoras da Carta aos Brasileiros, com pulseira de búzios e blazer amarelo, emocionou a todos ao se descrever como mulher preta, zeladora de Oxum.

É que essa autodescrição não significa a exclusão religiosa de nenhuma alteridade, mas a reiteração étnico-política daquilo que caracteriza a nação, a sua radical diversidade humana. Este foi o grande diferencial dessa Carta.

Ao se identificar a partir da matriz ancestral, a professora (de sobrenome tão sincrônico: Jesus Prudente) sinalizou para o próprio corpo como o capital cultural que autentifica um comum de pertencimento e de fé. Apontou para uma forma heterogênea de vida nacional.

NA HISTÓRIA DO HOMEM – O gesto foi simbólico e publicamente educativo: essa forma antecede em mil anos o cristianismo e zela por princípios cosmológicos que o Ocidente classifica como divindades. Uma dessas, Nanã, antiquíssima, figura no panteão dos deuses gregos ao lado de Atena, negra.

A antiguidade do culto afro em nada se choca com a sua flagrante pós-modernidade litúrgica, que não se arroga à verdade absoluta, prescinde de conversão, desconhece preconceito de gênero e respeita outras crenças. Isso se comprova desde as menores até as grandes comunidades dessa tradição.

A afro-perspectiva é uma restauração mental.

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