Por: ELIO GASPARI (Jornal O POVO)
Evitando enfrentar com as leis militares a insubordinação dos sargentos da FAB que operam o sistema de controle de vôos do país, Nosso Guia amarelou em pelo menos duas ocasiões. A primeira, em novembro, quando a FAB recuou da decisão de aquartelar os militares. Semanas depois, havia brigadeiros negociando com sargentos. Era o início da pane hierárquica. A segunda, na última sexta-feira, quando mandou o ministro do Planejamento para uma reunião sindical com amotinados que haviam posado para fotografias, refastelados e coloridos. Pior: desautorizou o comandante da Aeronáutica, que determinara a prisão dos insubordinados. O argumento segundo o qual Lula pode agir assim porque é o comandante supremo das Forças Armadas ofende a inteligência dos passageiros. Ele pode nomear um cabo da reserva para o Ministério da Defesa, mas falta competência ao presidente (seja qual for) para reconhecer sargentos como negociadores de um serviço da Força Aérea. O motim passou para a instância do Ministério Público Militar. Lá, crime é crime e motim é motim. Nesse curso, o país será levado a conviver com mais apagões e uma crise militar anexa a uma CPI. Essa situação, provocada pela leviandade do presidente da República, pode ser remediada votando-se no Congresso uma anistia para os amotinados. Uma proposta desse tipo só é razoável para quem acha que, em nome da preservação da ordem nos aeroportos, os sargentos-operadores não devem ser mandados para a cadeia. Parece idéia descabida, mas há antecedentes de mazorcas militares sedadas por anistias. Em novembro de 1910, os marinheiros dos principais navios de guerra brasileiros se rebelaram na Baía de Guanabara. Dispararam sobre a cidade e ameaçaram bombardeá-la se não tivessem algumas reivindicações atendidas. Entre elas, estava a abolição da chibata como forma de punição disciplinar. A baderna durou quatro dias, e o marechal Hermes de Fonseca cedeu. Em seguida, o Congresso anistiou os revoltosos. O líder da iniciativa foi Rui Barbosa. (Semanas depois, veio a forra, mas essa é outra história.) Em fevereiro de 1956, cinco oficiais da FAB se apoderaram de dois aviões militares e foram para Jacareacanga, no meio da Amazônia. Pretendiam iniciar uma revolta que derrubaria o presidente Juscelino Kubitschek. Cerca de sessenta oficiais das tropas do Rio, Salvador e Fortaleza se recusaram a reprimir o levante. Dezenove dias depois, os rebeldes se renderam. Em dezembro, outra revolta. Os oficiais amotinados seqüestraram um avião de passageiros (primeiro episódio desse tipo da história nacional) e se instalaram em Aragarças. Capitularam 36 horas depois. Em abril de 1960, com o apoio de Kubitschek, o Congresso anistiou os revoltosos. As anistias se destinaram a preservar a ordem (1910) e a evitar o aprofundamento de uma crônica crise militar (1960). No século passado, a mazorca dos quartéis vinha tanto de baixo como de cima. O motim dos sargentos da FAB representou uma humilhação para a oficialidade. Fazendo-se de conta de que Raul Castro não é o "general Máximo" de Cuba e de que a hierarquia e a disciplina militares são entes da razão conservadora, imagine-se uma sapataria. Nela ocorre uma greve de vendedores porque o gerente transferiu um funcionário. Eles cruzam os braços, deixam a freguesia descalça, exigem vagas em outra loja, aumento salarial e a revogação da transferência. Desautorizado pela diretoria, como o gerente cuidará da loja no dia seguinte? Na mesma linha, imagine-se que a greve ocorra numa cidade onde é impossível repor a mão-de-obra dos vendedores. Sem eles, a sapataria não pode funcionar. O caminho que leva os amotinados à cadeia pode conduzir os aeroportos ao inferno. Guardadas as proporções, essa foi a preocupação de Rui Barbosa em 1910. Os amotinados enfrentarão um processo que pode durar meses, ao fim do qual tudo indica que serão condenados. E como ficam, perante a lei, os negociadores que fecharam um acordo com eles? Já apareceram comissários que conhecem "brigadeiros progressistas" e parlamentares que recebem acenos de oficiais indignados. Essas duas espécies estão por aí, ciscando nos conciliábulos de Brasília. São nefandas figuras, retratadas em 1965 pelo marechal Castello Branco: "Eu os identifico a todos. E são muitos deles os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar". Desde 1981 o Brasil não vê extravagâncias do poder militar. O que menos se precisa é do ressurgimento das vivandeiras. ELIO GASPARI é jornalista.
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