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domingo, junho 18, 2006

Educação Ambiental e currículo escolar

Por: MARA REJANE OSÓRIO DUTRA
Mestre em Educação UFPEL; Professora da FURG e Educadora e coordenadora do Centro de Estudos Ambientais de Pelotas/ RS


Este texto[1] tem por objetivo discutir a relação entre Educação Ambiental e os currículos escolares, a partir de contribuições dos estudos pós-estruturalistas que, nos últimos, anos vêm problematizando a questão do currículo e suas implicações produtivas.
Parto, neste trabalho, da concepção de que os professores, a partir de diferentes discursos que os interpelam, produzem um currículo específico de EA.
Para desenvolver minhas reflexões, organizarei o texto da seguinte forma: inicialmente, apresentarei minhas escolhas teóricas, visto que toda pesquisa está ancorada numa perspectiva que oferece instrumentos e significados compreendidos como importantes para olhar um determinado objeto de estudo. Logo após, apresento algumas considerações baseadas num estudo realizado por mim entre 2002 e 2004. Neste estudo, tratei dos discursos sobre práticas pedagógicas de EA mobilizadas por onze professores de cinco escolas municipais de Pelotas/RS.
Estudos sobre o currículo: conceitos centrais
Os estudos sobre o currículo que seguem a corrente pós-estruturalista trouxeram contribuições que proporcionaram compreender os currículos escolares em suas ações produtivas. Ou seja, passaram a salientar que os currículos produzem “coisas” e que os currículos representam muito mais do que uma simples e desinteressada organização de conhecimento (Silva, 1999, Corraza, 2001, Garcia s/d). Currículo passou a ser compreendido como política cultural, como política de representação e como prática discursiva. Esses estudos, assim, demonstraram que os currículos são importantes mecanismos de produção e fabricação de culturas, de comportamentos, de identidades, e de valores que interpelam os sujeitos a quem se dirigem.
Como política cultural, o currículo é entendido como um artefato disputado. Grupos, sujeitos e instituições que participam dessa disputa desejam materializar, nos currículos, certos aspectos da cultura considerados, por eles, mais importantes, mais corretos, e mais normais, que outros. Como política de representação, o currículo é luta por definir e representar certas concepções de conhecimento e de cultura que têm como intenção produzir sujeitos e condutas específicas. E, como prática discursiva, o currículo define papéis, autoriza e desautoriza determinadas representações do mundo, hierarquiza conhecimentos, valoriza certos sujeitos, temas, grupos sociais e suas formas de vida e exclui outros tantos. Portanto, o currículo é um espaço de lutas e de conflitos que se acionam em torno dos diferentes significados sobre o social e o político. Nesse espaço, grupos expressam, através dos saberes e dos discursos, sua visão de mundo, seu projeto social e sua verdade sobre as coisas, instituindo os objetos de que falam e os sujeitos que interpelam (Silva, 1999).
Essas categorias rompem com idéias conservadoras sobre o currículo, quais sejam, concepções de currículo como grade, lista ou repertório de conhecimentos fixos, naturais e desinteressados que devem ser transmitidos aos alunos. Também, essas categorias nos chamam à atenção para o fato de que não há neutralidade nem desinteresse na seleção e materialização de saberes e conhecimentos que são organizados na escola; tampouco o currículo é um conjunto de conhecimentos que, simplesmente, aparece nos textos curriculares. O currículo é, antes de tudo, uma fabricação social caracterizada por um processo social de concorrência entre diferentes interesses que objetivam produzir e fortalecer aqueles conhecimentos sociais e culturais que entendem serem os mais válidos, os mais importantes a serem oferecidos aos estudantes (Silva, 2003).
Um currículo turístico
Atualmente é possível observar que uma série de grupos disputa os currículos escolares com objetivo de materializar certas concepções de EA (empresas, ONGs, mídia, governos, etc.). São diversas propostas de recursos para projetos, materiais pedagógicos, atividades, experiências, prêmios, panfletos e manuais que são constantemente apresentados como propostas às escolas e a seus professores. Alguns destes materiais tornaram-se subsídios importantes para as práticas educativas dos professores.
Os professores ao entrarem em contato com esses discursos produziram um tipo de Educação Ambiental que caracterizei como “currículo turístico”. Um tipo de currículo que, segundo Santomé (1995), teria as seguintes características principais: a trivialização; a superficialidade e a banalidade dos temas; a tendência a ter um estilo que se aproxima de algo como suvenires.
Nesse tipo de currículo, as experiências escolares de EA acontecem esporadicamente: são trabalhos ocasionais, restritos a dias especiais e comemorativos nos quais, os alunos fazem exposições e gincanas em que, geralmente, competem e ganham prêmios por recolherem garrafas PET, embalagens, papel, vidros, apresentam painéis com definições de flora e fauna ou sobre poluição da água, do solo e outras. Fazem, ainda, os mutirões de recolhimento de lixo com o objetivo de mostrar problemas como aumento e o desleixo, em termos do destino final do lixo e, também, realizam visitas a áreas de preservação (geralmente munidos de uma parafernália de enlatados, chips, refrigerantes...), atividades que se parecem muito com uma atividade meramente recreativa, num local diferente da sala de aulas. Essas atividades não envolvem leituras de textos, explicações e discussões; a atividade é realizada diante da concepção da auto-reflexão, da auto-informação, do esclarecimento pela apreciação da realidade que ali se mostra.
Na impossibilidade de organizarem estas atividades, algumas escolas procuram entidades ambientalistas ou órgãos governamentais que tratem da questão ambiental e que promovam atividades de EA nas escolas. Os trabalhos que mais se destacam nestas ações são trabalhos como oficinas de sucatas (onde os alunos aprendem a fazer brinquedos, jogos, enfeites com papel e garrafas plásticas), teatros, danças (que se orientam, geralmente, por sons e letras que falam da natureza) e recolhimento de resíduos sólidos em alguns locais. Passados os dias comemorativos, a escola volta às suas tarefas cotidianas e, quando muito, continua com o processo de separação de resíduo sólido e a sua venda por parte das escolas.
Nestas atividades os conhecimentos ambientais são fragmentados, limitados, e as relações históricas e políticas da construção e produção dos problemas ambientais permanecem intocadas. Ao não se discutirem os conceitos, os valores e os sentidos das relações sociais, econômicas e políticas e as implicações destas com os temas ambientais, os professores, quando muito, conseguem orientar para certos procedimentos descontextualizados.
Um fato significativo destas ações desenvolvidas nas escolas é a separação e venda de lixo limpo. As escolas, diante de suas dificuldades, vêm sendo seduzidas por ofertas de seletividade de resíduos e se tem observado, em alguns momentos, que os recursos provenientes das vendas desses resíduos têm-se sobreposto ao ato educativo. Não se trata de educar sobre o lixo e sobre os problemas sociais e ambientais, de que o tema poderia tratar, mas de recolher muito lixo, trazer para a escola, vender e produzir recursos extras. Além disso, as escolas acabam fortalecendo o consumismo e, consequëntemente, mais geração de resíduos, algumas trocam os resíduos por nota ou prêmios. Desta forma, os alunos procuram e, as vezes, pressionam os pais para comprar certos produtos que, em outras situações, não seriam consumidos por suas famílias.
No entanto, isso não acontece por má vontade ou desinteresse dos professores. Algumas questões devem ser observadas uma de ordem interna a organização escolar e outra de ordem externa. Internamente, a EA ocupa posição desprestigiada nos currículos, existe uma forte tradição disciplinar e pouca oferta de formação de professores para tratar dos temas ambientais. Fora da escola, outros fatores também ajudam a fortalecer o currículo turístico. Entre eles, é possível citar as atividades desenvolvidas por secretarias de meio ambiente, ONGs e empresas que buscam, nas escolas, meios de fortalecerem suas iniciativas e interesses. Ao fazerem isso, colocam, para a escola, uma série de representações e sentidos sobre as questões ambientais e sobre a EA, as quais acabam atravessando os modos de pensar e agir dos professores e, por conseqüência, as atividades que eles produzem.
Nesta relação o que acaba acontecendo é que nas escolas, a EA acaba existindo graças à boa vontade e disposição de alguns professores e como objeto de áreas de conhecimento ou disciplinas que são consideradas mais próximas da natureza. Neste caso, e levando-se em consideração as escolas estudadas, os professores falam em EA com dois sentidos diferentes. De um lado, é relacionada com as disciplinas de Ciências, Geografia e áreas a fins, embora, em termos de conhecimentos científicos, os professores dessas escolas entendem que existe uma relação mais estreita da EA com os conteúdos definidos, principalmente, para a área de Ciências. De outro lado, a EA se resume especificamente a procedimentos e ações (projetos de seletividade de lixo, plantios de árvores...) pouco vinculadas a essas disciplinas ou áreas.
Essa afinidade entre EA e ciências é também característica das políticas públicas educacionais, os próprios Temas Transversais reafirmam essa concepção quando admitem que as disciplinas que mais se “identificam como o tema ambiental seriam as ciências naturais, geografia e história; às demais disciplinas, cabe a condição de contribuintes eventuais ao desenvolvimento da EA na escola”. (Dutra, 2005). Em vários momentos, nos textos deste guia curricular, a disciplina de Ciências é colocada como um campo fértil de entendimento dos temas ambientais.
Como as definições acerca dos saberes específicos de EA ainda não vêm sendo muito discutidas e problematizadas nos espaços escolares, prevalece à força da tradição curricular que se caracteriza por uma concepção biologicista e cientificista da natureza que vem se pautando, por exemplo, na classificação, hierarquização e observação das espécies da flora e da fauna e do corpo humano.
Esses fatores conjugados fortalecem cada vez mais o desenvolvimento do currículo turístico, um tipo de currículo que é mobilizado no espaço escolar de diferentes maneiras. Os discursos e as práticas que produz são ofertados aos alunos, pais e comunidade escolar em geral. Portanto, são processo de fabricação de significados e representações que apresentam um único caminho a seguir; ao fazer isso, impede outros.
Creio que a luta para dar conta da transformação deste tipo de currículo (tanto na escola como na universidade) envolve entendê-lo como um arranjo, como uma produção humana que se configurou a partir de certos pensamentos, de certas necessidades sociais. Assim, se o currículo é uma produção, precisamos entender que ele pode ser novamente produzido e transformado. No entanto, essa transformação exige, no mínimo, a transformação dos modos como se compreendem os currículos. Envolve tratar o currículo como envolto em relações de poder (Foucault, 2004), como um artefato de produção de significados e representações culturais, como um artefato discursivo de produção de identidades, e como instituidor de condutas e comportamentos específicos. Transformar um currículo escolar seja ele na universidade ou nas escolas, exige, entre outras coisas, questionar qual política cultural queremos implantar, quais vozes que queremos privilegiar, sempre admitindo que o currículo é lugar de produção e de fabricação de discursos representações e significados (Garcia, mimeo, s/d). Isto porque o currículo cria e produz identidades, significados e modos de agir que interpelam uma série de sujeitos. Portanto, discutir, repensar, questionar, desestabilizar o currículo turístico e a EA que desenvolve é politicamente e culturalmente questão urgente e necessária.
Concluindo, gostaria de reiterar, neste texto, o que venho afirmando constantemente:
Meu desejo é que este texto possa ser considerado como um bom motivo para reflexão sobre o poder docente, sobre os currículos e, principalmente, sobre a EA, que mesmo estando nas escolas em condição menos nobre do que outros temas considerados mais importantes, vem produzindo significados e representações, as quais marcam e atravessam os modos de pensar e agir de alunos e da comunidade escolar. Espero que essa problematização seja produtiva no sentido de que possa, no mínimo, ser um bom pretexto para desencadear boas perguntas e outros olhares sobre o que acontece nas escolas (DUTRA, 2005:130).
Não existem receitas, mas a discussão é necessária. Se quisermos realmente uma EA com condições efetivas de transformação de uma realidade atual há que se fazer escolhas e as escolhas, acredito, exigem reflexões, discussões e trocas.
__________
[1] Este texto é parte adaptada de minha dissertação de mestrado com o título “Professores e educação ambiental: uma relação produtiva”.

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