Publicado em 20 de dezembro de 2025 por Tribuna da Internet

Parlamento deu um passo calculado em direção à leniência
Marcelo Copelli
Revista Fórum
O país testemunhou nesta semana uma manobra parlamentar que escancara o estágio atual da disputa política brasileira: setores relevantes do Congresso estão dispostos a usar o aparato democrático não para protegê-lo, mas para blindar aqueles que o atacaram. A tentativa de flexibilizar punições impostas aos responsáveis pela intentona golpista revela um Legislativo que, em vez de consolidar os mecanismos de defesa institucional, prefere relativizar o que foi a maior afronta às instituições desde a redemocratização.
Ao aprovar a proposta que altera os critérios de dosimetria, o Parlamento não se limitou a uma discussão técnica. Deu um passo calculado em direção à leniência, buscando aliviar a responsabilidade dos envolvidos no ataque contra o Estado e desafiar as balizas do regime democrático. É, até agora, o movimento mais articulado para transformar um ato deliberado de ruptura institucional em um erro desculpável, abrindo brecha para uma narrativa revisionista que tenta esvaziar a gravidade daquele levante.
CENÁRIO INQUIETANTE – – A chancela da maioria no Senado consolida um cenário inquietante: abre portas para reduções significativas de pena e pode beneficiar diretamente lideranças da extrema direita — entre elas o ex-presidente Jair Bolsonaro —, reduzindo seu tempo de encarceramento em caso de decisão definitiva. Trata-se de uma tentativa não apenas de reescrever o passado, mas de preparar o terreno para o futuro, sinalizando aos que atentaram contra a ordem que haverá acolhimento legislativo, e não punição proporcional.
A reação imediata do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — anunciando o veto integral assim que o texto chegar ao Executivo — demarca fronteiras políticas essenciais. Lula posiciona o governo como guardião da institucionalidade, em contraste com um Congresso que, dominado por forças conservadoras, busca flertar com a impunidade sob o pretexto da pacificação. A disputa em curso revela uma batalha simbólica: a democracia como princípio inegociável versus a democracia como instrumento de conveniência.
O argumento da “reconciliação nacional” apresentado por parlamentares da direita não passa de verniz. Sob essa retórica, tenta-se normalizar uma agressão planejada ao Estado, esvaziando a dimensão criminosa daquele ato. É um projeto que se vale do cansaço da opinião pública e do pragmatismo fisiológico para avançar um objetivo político claro: absolver a extrema direita de seu papel em uma tentativa de golpe.
SOBREVIVÊNCIA – Esse movimento é ainda mais significativo diante da crise de liderança do campo conservador. Sem uma figura unificadora desde o desgaste de Bolsonaro, o grupo busca reafirmar poder onde ainda tem musculatura: no Legislativo. Essa articulação funciona como uma afirmação de sobrevivência política, testando até onde pode ir na flexibilização das regras do jogo democrático para atender aos seus interesses eleitorais e ideológicos.
Há, portanto, duas dimensões centrais em disputa: uma jurídica e outra simbólica. A primeira diz respeito à responsabilização: o abrandamento das penas não é uma mera questão de matemática jurídica — é um recado claro de que a democracia pode ser agredida e, depois, relativizada. A segunda dimensão — mais profunda — lida com a memória coletiva: abre-se espaço para narrativas que questionam a gravidade do ataque, alimentam o negacionismo e enfraquecem o consenso democrático.
Esse gesto parlamentar não ocorre isoladamente. Ele dialoga com uma onda global de revisionismo autoritário, presente em potências ocidentais e replicado em democracias fragilizadas que normalizaram extremismo sob o pretexto de estabilidade. Quando o Brasil suaviza punições para rupturas democráticas, ele envia ao cenário internacional um sinal inequívoco: nossa democracia está disposta a negociar sua integridade.
IMPUNIDADE – Enquanto isso, nas ruas, a sociedade civil reagiu — protestos ecoaram em diversas capitais contra a manobra legislativa, revelando que parte expressiva do povo brasileiro compreende o que está em jogo: não se trata de reconciliação, mas de impunidade.
A esquerda democrática, portanto, enfrenta uma tarefa estratégica: defender o Estado de Direito não apenas na institucionalidade, mas no imaginário social. Democracia não se preserva apenas com decisões judiciais; preserva-se com mobilização, pedagogia política e vigilância.
O projeto que busca enfraquecer as responsabilizações não é um mero expediente legislativo: é uma tentativa de reescrever os limites do próprio Estado de Direito. Se prosperar, criará um precedente devastador, legitimando que futuras investidas autoritárias sejam tratadas com indulgência — e transformando a ruptura democrática em um risco calculado.
INEGOCIÁVEL – Se for barrado, seja pelo veto presidencial ou pela resistência social, reafirmará que, apesar das tensões e do desgaste institucional, o país ainda reconhece a democracia como patrimônio inegociável.
No fundo, o embate em curso vai muito além do destino jurídico de Bolsonaro e seus aliados. Ele expõe a questão essencial: se o Brasil permanecerá capaz de defender suas instituições ou se aceitará que elas possam ser agredidas e depois perdoadas por conveniência política. A sociedade resistiu quando o golpismo tentou se impor pela força. Agora precisa resistir à sua tentativa de absolvição pelo discurso e pela lei.
E é nesse confronto que se define o futuro do regime democrático brasileiro: uma democracia que responsabiliza seus algozes — ou uma democracia disposta a absolvê-los.