Publicado em 4 de novembro de 2024 por Tribuna da Internet
Muniz Sodré
Folha
Paris, fins do século 19, num conto de Guy de Maupassant, um lixeiro de origem camponesa se apaixona pela servente africana de um bistrô. Propõe-lhe casamento, que depende de aprovação dos pais, por isso ambos viajam ao campo. A mãe do noivo fica encantada com a futura nora, bonita além de prendada nas artes domésticas. Para apresentá-la à aldeia, passeiam de mãos dadas. Mas os vizinhos se assustam, as janelas se fecham. A matriarca nega ao filho o consentimento.
Sempre apaixonado, ele se lamenta tempos depois, perguntando à mãe se o obstáculo tinha sido a cor da jovem. Responde a camponesa: “Não porque ela fosse negra, meu filho, mas era negra demais”
NEGROS DEMAIS – Esse insight agudo sobre a diferença etnocultural sobreveio semanas atrás quando, numa mesa-redonda, ouvimos de uma pesquisadora sobre imigração no Rio de Janeiro um relato inabitual.
Segundo ela, é impossível para haitianos encontrar postos de trabalho na zona sul da cidade, nem sequer como peões de obra, porque as senhoras de classe alta se assustam com a cútis negro-retinta dos imigrantes.
No conto de Maupassant, não estava em jogo o racismo stricto-sensu, pois a província ainda não conhecia africanos, era mais o medo primitivo à diferença. No caso dos haitianos, é também isso, acrescido de racismo pós-abolicionista.
SEM DIFERENÇAS – Essa questão pode ser cansativa, mas vale repisar sempre que algo aparece para mostrar que o identitarismo racial não toca o fundamento do racismo, que não precisa de raça para existir.
Relembrando que não há raças humanas, um site opinativo francês evocou há pouco o hematologista Jean Bernard, que enumerava três condições para uma diferença entre a raça A e a raça B:
(1) “as propriedades intrínsecas da raça A deveriam ser muito diferentes da raça B (2) a raça A e a raça B não poderiam se misturar (3) todos os membros de cada raça deveriam ter propriedades genéticas comuns, senão idênticas”. Nenhuma delas acontece na espécie humana, seja no plano biológico ou cultural.
ENGANO HISTÓRICO – A racialização é de fato um engano histórico, científico e cultural. Encerrar alguém em identidades forjadas a partir de características fenotípicas, culturais e religiosas é um prolongamento do erro.
Mas a redefinição da esquerda pelo viés dito “identitário” (socio-corporal, na realidade) é um compromisso pragmático com a liberação de minorias das correntes em que foram aprisionadas por racismo e patriarcalismo.
Autoafirmação e autodeterminação são os valores progressistas em jogo. O jogador Vini Jr., atacado na Europa, neles se apoia em seu ativismo antirracista.
GARGALHADA – Vini Jr. é um negro que responde, trocando a tortura da gargalheira escravista pela gargalhada.
Mas essas pautas podem ter o mesmo efeito da jovem africana na aldeia. As janelas do “andar de cima” fecham-se ao que não é espelho. Hoje o racismo não mais tem a ver com identidade humana, como no período colonial, e sim com domínio social do ego moldado pelo corpo-imagem do mercado.
A “aldeia global” (metáfora de McLuhan) é tecno-narcisista, perpassada por um aturdimento inerente tanto à madame zona sul quanto ao pobre capturado por aberrações. Racismo é como uma pedra anticivilizatória que, lançada na água, reverbera. Suas raízes fizeram ecologia própria.