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terça-feira, janeiro 30, 2024

A revelação perturbadora de Ramagem que passou em branco



O ex-diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem passou meses se esquivando de jornalistas em Brasília desde que tomou posse, em fevereiro de 2023, no cargo de deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro - a Agência Pública, por exemplo, tentou ouvi-lo várias vezes, sem resposta.

Na semana passada, em meio às investigações da Polícia Federal sobre o uso do programa de computador First Mile, Ramagem apareceu ao vivo no canal de televisão a cabo GloboNews. Em uma entrevista de 15 minutos, defendeu-se das suspeitas e jurou inocência. No final, contudo, fez uma revelação perturbadora, que precisa ser investigada em todos os detalhes. Pela primeira vez desde a criação da Abin, em 1999, um alto dirigente da agência admitiu que ela faz, sim, “análise de inteligência de pessoa”, ou seja, a agência identifica, separa e produz documentos sobre cidadãos.

Por intuição e também a partir das diversas reportagens jornalísticas publicadas ao longo dos últimos anos, até as pedras portuguesas da Praça dos Três Poderes já sabiam. Mas ouvir isso da boca do próprio ex-diretor-geral da Abin coloca tudo em outra perspectiva. “Análises” sobre cidadãos remetem aos piores momentos do famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações) da ditadura civil-militar. Quem foram as pessoas “analisadas” no governo Bolsonaro? O que foi escrito sobre elas? Onde estão os documentos?

Se um ocupante de cargo de chefia na Abin pode determinar um trabalho de inteligência sobre um cidadão, conforme explicado por Ramagem na entrevista, está aberta a porta para a pura perseguição ideológica. Relatórios ou “análises” produzidos pelos serviços de inteligência não se submetem ao acompanhamento do Poder Judiciário. O único “controle externo” ao qual a Abin aceita se sujeitar é fake (uma comissão inoperante e desinformada, comandada há anos pela direita no Senado Federal, conforme argumentei na newsletter de outubro de 2023).

Na parte final da entrevista à Globonews, o jornalista Octavio Guedes indagou a Ramagem sobre a informação contida na decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes de que um currículo da promotora de Justiça que atua no caso Marielle Franco, Simone Sibílio, teria sido confeccionado pela Abin e encontrado pela PF durante as investigações.

Ramagem respondeu da seguinte forma: “A inteligência, ela é coleta de dados e de informações. Se tem no servidor [de dados de informática], e eu não sei quem acessou, tem que verificar [com] a Polícia Federal, quem alimentou e quem retirou, quem colocou, quem é a pessoa que botou o currículo da promotora e perguntar a essa pessoa o porquê. E como eu falei, tem que haver uma organização de procedimento. Se você vai fazer uma análise de inteligência sobre pessoa, tem que ter alguma provocação de uma chefia, de uma direção e a finalização e a conclusão. E é isso que nós estávamos levando e cobrando da Abin que não estava sendo feito”, disse Ramagem.

Infelizmente a entrevista acabou naquele exato momento sem maiores explicações do entrevistado. Restam muitas dúvidas. Quantas e quais pessoas passaram por “análise de inteligência” da Abin na gestão de Ramagem? Quais foram os chefes ou diretores que autorizaram tais trabalhos? Quais são os critérios utilizados pela Abin para escolher a pessoa a ser alvo de uma análise? Para onde ela é dirigida e quais seus efeitos?


 
A declaração de Ramagem também é impressionante porque há mais de duas décadas, desde a criação da Abin, em 1999, diferentes diretores-gerais bateram na tecla de que o órgão tratava de fatos e circunstâncias, mas nunca de pessoas.

Isso era repetido à exaustão porque a Abin procurava se livrar do grande fantasma do SNI. Há 16 anos, em 2008, escrevi que um estudo feito por especialistas do Arquivo Nacional de Brasília havia chegado ao número de 308 mil brasileiros fichados durante a ditadura. Era um “monstro”, no dizer do jornalista Edmundo Moniz, em artigo publicado em 1967 pelo “Correio da Manhã”. Agora cabe a pergunta: quantos foram “fichados” pelo monstro da Abin de Bolsonaro?

A fala de Ramagem se choca com pelo menos dois trechos do depoimento que ele próprio prestou ao Congresso Nacional em julho de 2021, dois anos depois de tomar posse na direção-geral da Abin. O delegado foi indagado pela então deputada federal Perpétua Almeida (PCdoB-AC), aliás de forma profética, se a Abin já estava “monitorando grupos que podem questionar, inclusive com violência, as eleições de 2022, para evitar uma tomada do Parlamento, como aconteceu no Capitólio americano”.

Ramagem disse que, a exemplo da “segurança pública e das forças de segurança pública”, a Abin fazia apenas “acompanhamento” de “manifestações” e difundia as informações “para os demais integrantes” do Sisbin, o Sistema Brasileiro de Inteligência. Afirmou que, quando era detectada alguma “possibilidade de notícia de crime”, o caso era encaminhado “aos setores responsáveis”. Sobre os cidadãos, contudo, Ramagem foi peremptório: “Não há esse monitoramento. Nós não fazemos monitoramento de pessoas, muito menos para esses fins de resultados de eleição”.

A deputada insistiu sobre os riscos que o questionamento das urnas eletrônicas representava à institucionalidade e à democracia: “Desculpe-me, diretor, mas isso pode botar a democracia do País em risco. Por isso, há preocupação. A Abin não está tendo esse olhar, esse cuidado?”

O então diretor-geral da Abin reiterou: “Eu quis referir que nós não fazemos análise de indivíduos. A potencialidade de crise institucional é verificada como algo de domínio público, entre todos os Poderes. A gente não faz questões opinativas nisso. Por isso, tudo passa por fatos concretos, pelo que está acontecendo”.

A comparação das declarações de Ramagem ao Congresso com a entrevista que ele deu à GloboNews causa perplexidade. O diretor-geral que disse expressamente aos parlamentares que “não fazemos análise de indivíduos” vem agora afirmar que uma “análise de inteligência sobre pessoa” pode ser feita a partir de uma provocação de um chefe ou diretor. É uma contradição fundamental que não pode ficar por isso mesmo.

 

Rubens Valente 
rubensvalente@apublica.org

Colunista da Agência Pública

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