terça-feira, novembro 25, 2025

O delírio, a tornozeleira e a crise de responsabilidade


Defesa tenta justificar ação devido ao efeito de medicamentos

Pedro do Coutto

Assumiu um caráter ainda mais dramático o episódio que marcou a tentativa de Jair Bolsonaro de livrar-se da tornozeleira eletrônica, gesto que o próprio ex-presidente atribuiu a um suposto surto provocado por medicamentos.

Ao apresentar-se como vítima de uma combinação farmacológica que teria gerado paranoia e alucinações, Bolsonaro buscou explicar por que tentou abrir o equipamento com um objeto metálico — ato que, para a Justiça, representou clara violação das medidas impostas e sinal de risco concreto de fuga, especialmente diante do histórico recente de aliados que cogitaram buscar asilo em embaixadas em Brasília.

TENSIONAMENTO – A versão clínica, embora não deva ser descartada levianamente — efeitos adversos de remédios como os citados por seus médicos podem, de fato, gerar confusão mental em pacientes idosos —, não elimina o peso político e jurídico do episódio. A Justiça não analisou apenas o gesto, mas o contexto: um ex-presidente condenado por tentar subverter a ordem constitucional, com forte base mobilizada e histórico de tensionamentos com o Supremo Tribunal Federal.

Nesse cenário, a manipulação da tornozeleira não era apenas um incidente doméstico, mas um possível prenúncio de evasão. Por isso, a decisão de converter a prisão domiciliar em preventiva foi apresentada como necessária para preservar a autoridade do processo e impedir novas violações.

No plano político, a narrativa do “surto medicamentoso” ganhou contornos de estratégia. Não é raro, em momentos de crise, que agentes públicos tentem humanizar erros por meio de relatos de fragilidade pessoal, enquanto seus adversários utilizam o mesmo episódio como evidência de irresponsabilidade.

GRAVIDADE – A saúde mental, nesse jogo, corre o risco de ser convertida em instrumento retórico: de um lado, para atenuar a gravidade do ato; de outro, para reforçar a imagem de alguém incapaz de respeitar deveres legais. O debate público, como de costume, preferiu a polarização às nuances, reduzindo o episódio a mais um capítulo da guerra política permanente.

A repercussão internacional reforçou a dimensão institucional do caso. Jornais estrangeiros destacaram a manipulação do monitoramento eletrônico como símbolo de um país que ainda convive com as consequências de um ataque frontal às suas regras democráticas. Nesse sentido, o episódio é menos sobre remédios e mais sobre responsabilidade: quando um ex-presidente tenta violar instrumentos de controle judicial — seja por delírio, seja por cálculo —, coloca em xeque a estabilidade das instituições.

O Brasil precisa, neste momento, de duas atitudes complementares: compaixão e rigor. Compaixão para tratar com seriedade eventuais problemas de saúde, sem ironia nem desprezo; rigor para aplicar a lei de forma igual, sem transformar fragilidades pessoais em salvo-conduto político. O discurso do delírio não pode se sobrepor ao dever de responsabilidade, assim como a punição não pode ignorar garantias fundamentais. O equilíbrio entre humanidade e firmeza é o que preserva a democracia de seus extremos — e impede que crises pessoais se tornem surtos institucionais.


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