Bolsonaro politizou militares, que agora temem um governo petista
Por Merval Pereira (foto)
O governo Lula, que nem mesmo começou, já está tendo de apagar um incêndio na área militar. Tudo indica que está tendo sucesso. Os comandantes das três Forças — Exército, Marinha e Aeronáutica — iniciaram um movimento conjunto para sair de seus postos antes mesmo que Lula assumisse a Presidência da República. Um fato gravíssimo, pois não há outro motivo para essa substituição prematura que não seja a explicitação da rejeição dos comandantes ao sucessor eleito.
O comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, já marcou o dia 23 deste mês como data para a transmissão do cargo. O que muitos entre os militares consideram indisciplina, quebra da hierarquia, está sendo negociado nos bastidores para que não se confirme, pois essa restrição seria um sinal para que os subordinados, como já acontece, se sintam à vontade para exprimir seu repúdio à eleição de Lula, fato sem precedentes.
Assim como essa atitude extrema, a leniência nos quartéis com os bolsonaristas acampados em áreas de segurança nacional se deve à influência do próprio presidente Bolsonaro, que mesmo em silêncio estimula essas atitudes. Além do mais, a ação para impedir as manifestações cabe às forças de segurança pública, e não à Forças Armadas, que só atuariam diretamente em caso de decretos para ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
O presidente ou os governadores precisam de uma solicitação formal para isso. Se os comandantes das Forças Armadas não solicitam essa ação, são lenientes, coagidos pelo presidente da República.
O futuro ministro da Defesa, ex-deputado e ex-ministro José Múcio Monteiro já começou a tratar do assunto discretamente, como é seu estilo, depois de convidado numa reunião com o presidente eleito Lula, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e o coordenador da transição, ex-ministro Aloizio Mercadante. A solução de escolher os mais antigos para comandar cada Força é a menos traumática, embora as Forças Armadas estejam instáveis neste momento, e qualquer decisão possa provocar reações de setores mais radicais.
Um bom exemplo é o que acontece no Exército, cujo comandante, general Marco Antônio Freire Gomes, foi obrigado a soltar uma declaração formal no Informe da Força para defender generais atacados em blogs bolsonaristas como “melancias” — verdes por fora e vermelhos por dentro. Dois deles são possíveis futuros comandantes: Valério Stumpf, chefe do Estado-Maior do Exército, e o comandante militar do Sudeste, Tomás Miné Ribeiro Paiva.
Também o ex-comandante do Exército Villas Bôas saiu em defesa dos dois e de outros criticados. Isso indica que a Força está unida na defesa dos seus, mas pressionada por ações de militares da reserva e bolsonaristas que pedem uma intervenção militar. É fato que o Alto-Comando do Exército é bolsonarista, mas não é golpista. Uma definição para o caso dada por um quatro estrelas: “Batemos continência para a Constituição”.
Não gostam de ter Lula como comandante em chefe. Muito porque o presidente Bolsonaro conseguiu levar os militares para uma politização que provoca perturbação na hierarquia. Há quatro áreas que os militares consideram sensíveis e fundamentais, onde temem a ação do PT: a Previdência, em cuja reforma foram tratados com excepcionalidades; a paridade salarial entre reserva e ativa; as promoções; e o ensino militar. Esses dois últimos fazem parte dos temas ideológicos sensíveis.
Quando o hoje senador Jaques Wagner foi ministro da Defesa, houve um movimento interno para aprovar uma nova legislação que retirava dos comandantes a prerrogativa de definir as promoções e também ensejava a possibilidade de interferência no ensino militar. A crise foi superada com a revogação da medida, mas o temor continua. Até porque, depois da vitória de Bolsonaro em 2018, um documento do PT incluiu como um “erro estratégico” não ter conseguido alterar o ensino militar.
O futuro ministro da Defesa, José Múcio, é muito articulado, transita tanto entre bolsonaristas quanto petistas e tem a amizade de Lula, algo importante para os militares se sentirem prestigiados. Os setores nuclear, espacial e cibernético são os mais estratégicos para os militares, que têm o quarto maior orçamento da República e são o maior contratante de tecnologia de ponta. A despolitização do setor militar e das polícias militares passa pela mudança de foco governamental, com a valorização dessas áreas.
O Globo