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terça-feira, maio 31, 2022

Entre a poligamia e o vibrador: o jornalismo anda muito esquisito...




E além de aprender sobre menstruação, toda mocinha ganharia um vibrador da mamãe, que a levaria a um ginecologista para tirar o hímen e possibilitar esse importante tratamento. As lésbicas precisariam rever seus conceitos e virar adeptas da penetração. É isso mesmo? 

Por Bruna Frascolla (foto)

Foi com espanto que li a manchete d’O Globo que dizia o seguinte: “Vibrador: médicos devem prescrever uso regular do acessório para mulheres, afirmam pesquisadores”. Logo abaixo, um resumo: “Os benefícios da prática incluem melhora na saúde do assoalho pélvico e na saúde sexual de forma geral, além de redução da dor vulvar”. Somos levados a crer que por puras razões científicas os médicos devem prescrever vibrador para todas as mulheres. Uma conduta científica seria levar uma montanha de vibradores para um convento a fim de cuidar da saúde das freiras. E além de aprender sobre menstruação, toda mocinha ganharia um vibrador da mamãe, que a levaria a um ginecologista para tirar o hímen e possibilitar esse importante tratamento. As lésbicas precisariam rever seus conceitos e virar adeptas da penetração. É isso mesmo?

Vamos ao corpo do texto: “Pesquisadores do Cedar-Sinai Medical Center, nos Estados Unidos, afirmam que médicos deveriam prescrever o uso regular de vibradores para suas pacientes mulheres. Em artigo publicado recentemente na revista The Journal of Urology, a equipe concluiu que a prática comprovadamente traz benefícios médicos, como melhora na saúde do assoalho pélvico, redução da dor vulvar e melhorias na saúde. Diversas pesquisas já haviam indicado os impactos positivos da masturbação feminina frequente [ênfase minha] na saúde física e mental. Entretanto, haviam [sic] poucas informações sobre o uso de vibradores como auxílio à masturbação e se eles têm impactos positivos na saúde”. Não só é isso mesmo como ainda tem o desplante de atrelar masturbação a uso de vibrador. Se for assim, todo e qualquer benefício da masturbação poderá ser usado como prova dos benefícios do vibrador. No caso feminino, ainda tem mulher que não consegue se masturbar (vide a mera existência de oficinas de siririca para feministas em universidade pública). Assim, os problemas psicológicos da criatura que quer se masturbar e não consegue podem ser todos interpretados como falta de vibrador, e o bem-estar prévio das que conseguem, como efeito do vibrador. Aí não teve jeito e fui atrás do paper, para ver se eles tinham a cara de pau de equivaler masturbação feminina a uso de vibrador.

O paper não diz nada disso

A matéria d’O Globo citava Alexandra Dubinskaya como líder da pesquisa e dava o nome do jornal. Pude então encontrar o artigo, que vocês podem ler clicando aqui. Não há nenhuma alusão a masturbação. O título é “Is it time for FPMRS to prescribe vibrators?” FPMRS, aprendemos no resumo, significa “Female Pelvic Medicine and Reconstructive Surgery”, algo como “Medicina ginecológica pélvica e cirurgia reconstrutiva”, também chamada de uroginecologia, mas americano adora sigla. Assim, o título do artigo pergunta se os uroginecologistas não deveriam passar a prescrever vibradores. No resumo, lemos também que o foco da equipe são mulheres com problemas no assoalho pélvico – o que vai desde incontinência urinária até recuperação de uma cirurgia reconstrutiva.

Poucas mulheres jovens e sadias têm por que procurar um uroginecologista. Problema em assoalho pélvico costuma ser coisa de mulher que pariu muito, gordonas e velhinhas.

A mim me parece algo factível que vibradores tenham serventia no estímulo de uma musculatura que precisa ser regenerada. Isso é uma descoberta bem mais modesta do que a necessidade feminina universal de vibradores. Pelo texto d’O Globo, parece que quem não usar vibrador vai ter dores vaginais e incontinência urinária.

De resto, o artigo lastima a falta de pesquisas que investiguem os benefícios dos vibradores e computa os poucos artigos existentes sobre vibradores, bem como os benefícios indicados por eles. Existem artigos sobre malefícios de vibradores? Não sabemos. O que sabemos é que os próprios benefícios são pouco conhecidos, já que todo o ponto do artigo é que os benefícios dos vibradores são pouco estudados, e que isso é um problema porque provavelmente eles são benéficos para mulheres com problemas no assoalho pélvico. Cito as conclusões: “Os vibradores não são bem estudados, e, dados os benefícios promissores demonstrados nos artigos identificados, deveriam ser feitas mais pesquisas para investigar a sua utilidade. Considerando-se os potenciais benefícios dos vibradores para a saúde pélvica, sua recomendação para mulheres deve ser incluída no nosso arsenal de tratamentos para mulheres com desordens no assoalho pélvico”.

O que se passa no jornalismo?

Moral da história: a recomendação do vibrador para todas as mulheres saiu da cabecinha do jornalista, que nem assinou a matéria. D’O Globo foi para o Extra, com a manchete “Médicos devem prescrever uso regular de vibradores para mulheres, dizem pesquisadores americanos”; e depois para o UOL, que anuncia: “Sentir prazer faz bem à saúde! Uso de vibradores é recomendado por cientistas”. Ao que parece, essa abobrinha é de solo nacional mesmo, pois não pude identificar nenhuma agência internacional que tivesse extraído essa inferência do artigo científico. Se isso tivesse acontecido, poderíamos incluir O Globo num telefone sem fio internacional e explicar a manchete maluca. Mas esse não é o caso.

Como será que isso aconteceu? Eu duvido de que a redação tenha algum leitor assíduo de periódicos de urologia. O mais provável é que alguém tenha posto “vibrator” no Google Alerts para ser notificado quando o termo aparecesse em artigos científicos. Aí é só pegar o estudo e fazer um malabarismo para promover pautas predeterminadas com um belo "diz estudo". Resta saber o que mais não haverá nessa lista do Google Alerts…

Promoção da poligamia

Desde o ano passado me deparo com a notícia de que um homem desafia a monogamia porque vive com nove ou oito esposas. Varia da época da matéria. A primeira vez que me lembro de ter visto foi ano passado. Lembro porque ele estava se exibindo com nove caixas de pizza, e eu finalmente consegui decifrar um refrão de pagodão que tocava aqui perto de casa: “Pagador de pizza”. O eu lírico da música se gabava de ser um pagador de pizzas e de ser o rei das cachorras. Mas aquele era casado, dizia a matéria. Não era sexo casual. Depois apareceu notícia de que uma das nove desejava um casamento monogâmico, ele se recusou e o número de esposas baixou para oito. Estaria atrás de uma gordinha para retomar o número. No maior jornal do meu estado, saiu semana passada que “Homem casado com 8 mulheres tem nome tatuado no corpo delas” (mas eram só cinco as tatuadas, segundo o corpo do texto). E agora, esta semana, a troco de nada, o Metrópoles nos conta “Como é a agitada rotina de influencer ‘casado’ com 8 mulheres”.

Em momento nenhum descobrimos o que ele faz da vida; só que “as parceiras se dividem para fazer as atividades domésticas enquanto ele assume as responsabilidades financeiras”. Qual será o grau de estabilidade dessa relação? Duas “esposas” sequer moram na casa. Resumindo a história da matéria, era uma vez Arthur, nascido na Venezuela e criado na Paraíba. Casado e pai, Arthur trai a esposa com Luana, se separa e decide ficar com ela, contanto que numa “relação liberal”. Desde então, mantida Luana, tem havido um rodízio de mulheres. Todas o têm como único homem e só fazem sexo na presença dele, isto é, com ele participando ou só olhando a interação feminina. Quanto ao grau de estabilidade… “O relacionamento com Luana é o mais duradouro: sete anos. As demais relações variam de nove meses a dois anos”. Ou seja, há uma mulher fixa e as rotativas.

Que faz da vida esse influencer além de ficar elogiando as maravilhas do poliamor para jornais sempre interessados? Sexo. E como ele ganha dinheiro? Com isso mesmo. Numa rápida pesquisa, descobrimos que Arthur, O Urso, é uma estrela do OnlyFans. Esta é uma plataforma feita para produtores de conteúdos digitais venderem o seu peixe; na prática, é um lugar onde jovens vendem pornografia. Segundo uma matéria britânica de 2021, o casal (sim, casal) Arthur e Luana faturaria 56 mil libras por mês no OnlyFans. Em algum momento do ano passado, o casal fogoso se transformou em porta-estandarte do poliamor. O “divórcio” de Arthur de uma das 9 esposas deu até no Daily Mail.

A pergunta que não quer calar é: os jornalistas não acham relevante informar que os envolvidos no tal casamento são atores pornôs? No mundo islâmico, casamentos “poliamorosos” parecidos com esse existem. Mas o leitor há de convir que um homem tradicional que se compromete com uma série de esposas e sogros é bem diferente de um casal que ganha dinheiro com pornografia e mantém uma rotina agitada com jovens rotativas. Ora, o islâmico casa com donzelas e não vai mostrá-las peladas na internet. O casamento dura e gera filhos. Não pode ser um suruba eterna; há mulheres amamentando e crianças correndo pela casa. Não tem nada a ver com performance de atores pornôs.

Propaganda?

Dado o dinheiro que o OnlyFans movimenta, é o caso de nos perguntarmos se ele não investe em publicidade. Investindo, é o caso de nos perguntarmos se jornais tradicionais teriam coragem de colocar o OnlyFans como patrocinador, ou se fariam a publicidade com mais discrição, na forma de matérias jornalísticas. Este seria um jeito de explicar por que tantos jornais falam da vida do ator pornô omitindo o fato de que é um ator pornô. Se for esse o caso, devemos nos perguntar se boa parte da promoção de "desconstrução" da normalidade não corre o risco de ser publicidade velada de Big Techs da pornografia.

Voltemos ao artigo científico que inspirou O Globo. Ele toca num assunto muito importante, que é o foco das pesquisas: não há estudos sobre tudo, e algumas coisas mereciam ser mais estudadas do que outras. Uma delas, ao meu ver, é o impacto que o mercado erótico digital tem sobre a juventude.

Uma amiga minha, estudante de medicina no Sudeste, passou um tempo atendendo em ambulatório de infectologia. Segundo ela, há um perfil muito específico de novos casos de Aids: a mocinha de classe média tradicional chega no ambulatório acompanhada pelos pais, com o pescoço todo enrolado para tapar as ínguas que o HIV causa. Confirmado o diagnóstico, o protocolo é “temos que avisar ao seu namorado”. Eis que não há namorado. As mocinhas enrolam consulta após consulta para explicar por que o namorado não veio, até a estudante de medicina pedir para falar a sós com a paciente. No mais das vezes elas admitiam que não havia namorado nenhum. Elas faziam programas e compravam artigos de luxo. Os pais não faziam ideia de nada, porque prostituta, para eles, é fácil de reconhecer. Não fazem ideia de que menina de apartamento que passa o dia trancada na internet pode estar se anunciando como prostituta – e há toda uma propaganda que ensina a chamar urubu de meu louro, isto é, prostituta de sugar baby e quejandos. Essa amiga mesma tem colegas de faculdade que se orgulham de ter um OnlyFans. Supostamente é empoderador vender suas fotos pelada na internet.

Eis aí algo digno de ser estudado por cientistas sociais e investigado por jornalistas. Por esse tipo de coisa se vê que ciência social e jornalismo são importantes. Importantes demais para estarem do jeito que estão.

Gazeta do Povo (PR)

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