Publicado em 30 de outubro de 2025 por Tribuna da Internet

O avanço das forças de segurança deixou um saldo doloroso
Pedro do Coutto
A cena que se desenrolou no Rio de Janeiro nesta terça-feira ultrapassa o campo das estatísticas e das notas oficiais. Não se trata apenas de uma operação policial de grande porte ou de um choque direto entre forças do Estado e facções criminosas.
O que paralisou ruas, escolas, comércio e vidas inteiras foi, uma vez mais, a revelação de uma ferida antiga, que jamais cicatrizou: a convivência permanente entre territórios sob domínio armado e um Estado que chega tarde, chega fragmentado — e, não raro, chega de forma equivocada.
SALDO DOLOROSO – O avanço das forças de segurança sobre o Complexo do Alemão e o Complexo da Penha, regiões que há décadas simbolizam a disputa territorial pelo controle do tráfico de drogas e de economias ilícitas, deixou um saldo doloroso. Mais de 100 mortos — entre policiais, moradores e integrantes das facções — não traduzem sozinhas o tamanho da tragédia.
A vida cotidiana paralisada, o medo coletivo, o barulho incessante de helicópteros e disparos ecoando em bairros densamente povoados são tão graves quanto o número registrado nas certidões. Famílias não puderam sair de suas casas, crianças ficaram sem aula, trabalhadores perderam o dia — e o salário. O direito básico de ir, vir e existir foi sequestrado.
Esse quadro não é eventual, nem surpreendente. É o resultado direto de décadas de políticas erráticas, de interrupções sistemáticas de programas sociais e de segurança, de disputas partidárias que sempre trataram as comunidades mais pobres como territórios “problema”, e não como parte legítima da cidade.
VAZIOS DO PODER PÚBLICO – Ao longo do tempo, facções ocuparam os vazios deixados pelo poder público, oferecendo o que o Estado não oferecia: regras, proteção seletiva, auxílio financeiro e até mediação de conflitos. Uma espécie de “governo paralelo” que, embora baseado na violência, ganhou aderência onde a cidadania foi negada.
Quando o Estado retorna apenas sob a forma de aparato armado — sem planejamento integrado, sem presença continuada, sem políticas de recomposição econômica e social — o resultado é previsível. A operação termina, os fuzis se recolhem, a imprensa muda de pauta, mas a população fica: vulnerável, sozinha e novamente exposta ao controle dos grupos criminosos, que se reorganizam, rearmam-se e retomam o comando. É um ciclo que se repete como um relógio quebrado que insiste em marcar sempre a mesma hora.
CONFRONTO DIRETO – A morte de policiais e civis expõe uma verdade amarga que o país reluta em encarar: a segurança pública no Rio de Janeiro continua sendo conduzida sob uma mentalidade de guerra. Como se fosse possível derrotar um fenômeno social, econômico e territorial apenas pelo confronto direto.
Não há vitória duradoura quando o adversário não é um exército formal, mas uma rede que se alimenta do desemprego, da informalidade, do tráfico de armas que cruza fronteiras, da ausência de serviços públicos e da desigualdade instalada há gerações.
Enquanto o Estado insistir em aparecer apenas sob a forma de força bruta, e não como presença institucional permanente — escola, posto de saúde, assistência social, saneamento, esporte, cultura, emprego — o domínio armado continuará oferecendo respostas onde a democracia falha. Inteligência policial, monitoramento financeiro, controle de fronteiras e continuidade administrativa não são slogans: são requisitos para um projeto de segurança que respeite vidas.
RESISTÊNCIA – O Rio não é apenas palco de tragédias. É também cidade de resistência cultural, de invenção, de beleza que persiste mesmo cercada de medo. Mas resistência não pode substituir política pública. Nenhuma população deve carregar, sozinha, o peso de enfrentar o abandono.
A tragédia desta semana precisa ser entendida não como mais um episódio entre tantos, mas como um divisor de águas possível. A escolha agora é entre repetir o ciclo — ou finalmente reconhecê-lo para quebrá-lo.
Porque quando o esquecimento se torna hábito, a violência se torna rotina. E um país que aceita a rotina da violência como destino perde, pouco a pouco, a capacidade de imaginar o futuro. O Rio de Janeiro ainda pode respirar outro ar. Mas isso exige que o Estado pare de chegar tarde — e comece, enfim, a permanecer.