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segunda-feira, dezembro 26, 2022

Silêncios que falam




Brasil não precisa se somar às sanções à Rússia, mas condená-las é legitimar a guerra imperial

Por Demétrio Magnoli (foto)

O Brasil "vai voltar a todo mundo", garantiu Mauro Vieira, novo ministro das Relações Exteriores. Não é a ideologia, mas o interesse nacional, que guiará nossa política externa. As declarações marcam uma nítida ruptura com a orientação bolsonarista, que fechou-nos num casulo de relações preferenciais com governos da direita nacionalista e correntes do fundamentalismo cristão. O que se fala é positivo. O problema reside no que se cala.

Guerra Fria 2.0 entre EUA e China? O Brasil rejeita a escolha, anunciando uma "nova era" na parceria com Washington e o aprofundamento do intercâmbio com Pequim. Mais: diante da polaridade entre as duas grandes potências, o Brasil empenha-se em consolidar as relações com a Europa, por meio da implementação do acordo Mercosul/União Europeia. "Não nos preocupamos com a ideologia; a ideologia é a integração", enfatizou Vieira, abordando a América do Sul.

Quem, senão lunáticos, pode se opor ao restabelecimento de relações com o governo Maduro, que corresponde simplesmente ao reconhecimento de uma realidade? Nações conversam com nações, independentemente de seus regimes políticos. Aqui, porém, emerge uma lacuna: o primeiro silêncio.

O interesse nacional não se mede apenas por comércio e investimentos. Nossa Constituição, expressão do interesse nacional, manda organizar a política exterior também em torno de valores: a defesa dos direitos humanos. O novo governo violará o contrato constitucional se evitar a crítica às ditaduras, especialmente no nosso entorno.

O chileno Boric as critica, sem abandonar o diálogo. Nos mandatos petistas anteriores, o Brasil fez o oposto, celebrando os regimes cubano, venezuelano e nicaraguense. Era "ideologia", não "integração".

O segundo silêncio é pior. Dias atrás, Lula conversou com Putin —mas não com Zelenski. Na esfera diplomática, o gesto indica uma preferência. A palavra "paz" surgiu na conversa. Outra palavra, "negociações", pontua as declarações do presidente eleito e de Vieira, quando se trata da guerra de conquista russa na Ucrânia.

Nunca, porém, proferem-se as expressões "soberania nacional", "integridade territorial" e "retirada das forças invasoras". A Ucrânia resiste à invasão —e opera na contraofensiva, retomando áreas ocupadas pela Rússia. Nesse cenário, Putin fala em "paz" e "negociações", senhas para o congelamento temporário do conflito até a reorganização das forças russas e a retomada do impulso ofensivo.

Turquia e Índia, que optaram pela neutralidade, também usam as duas palavras —mas as complementam com a defesa da integridade territorial ucraniana. O Brasil não: sua condenação retórica da agressão inicial, expressa na ONU, desembocou na fórmula que interessa ao Kremlin.

"Numa eventual negociação, o Brasil defenderia que a Rússia devolva à Ucrânia os territórios anexados recentemente?", perguntou-se a Vieira. Sua resposta: "Não se pode partir de nenhum princípio preestabelecido. Ou dizer, só sento para negociar se for assim". Registre-se que a pergunta não abrange os territórios anexados pela Rússia em 2014, mas exclusivamente as novas anexações proclamadas em setembro. O novo ministro trata a integridade territorial como um estorvo que atrapalha a "paz" putinista. Quem disse que nossa política externa abandonou a ideologia?

Sob Bolsonaro, o Brasil posicionou-se contra as sanções à Rússia. Vieira foi mais longe, tachando-as como "ilegais". A afirmação é falsa, pois elas —como a ajuda militar à Ucrânia— derivam do conceito jurídico de autodefesa coletiva, inscrito na Carta da ONU.

O Brasil não precisa se somar às sanções ou à ajuda militar, mas condená-las equivale a legitimar a guerra imperial. O chocante, porém, mais uma vez, está naquilo que se silencia: o novo ministro esqueceu de qualificar como ilegais as anexações russas. O silêncio grita.
 
Folha de São Paulo

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