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segunda-feira, setembro 27, 2021

A última estadista




Por Dorrit Harazim (foto)

Qual foi a última vez em que líderes do mundo inteiro sentiram uma espécie de orfandade diante do afastamento de um de seus pares do cenário global? Não vale citar o sul-africano Nelson Mandela, pois ele já estava fora do poder quando sua morte foi pranteada simultaneamente em 24 fusos horários. Tampouco vale nomear Churchill ou Franklin Delano Roosevelt, pois Stálin e Hitler lhes dedicaram atenção merecida, mas os teriam eliminado de cena se pudessem. A pergunta se refere a um vazio raro na História: uma liderança mundial que deixa o poder em vida, por vontade própria, com direito a respeito e graus variados de admiração universal.

A conservadora Angela Merkel, cuja sucessão como chanceler da Alemanha está sendo decidida na eleição deste domingo, é essa estadista. (Ótimo o vocábulo terminar em “a” e não exigir concordância no feminino, coisa rara tratando-se de posições de poder.) Por ter honrado a arte de governar nos 16 anos em que liderou o país-potência da Europa, o peso de Merkel é acentuado pela degradação da função pública no mundo. O que sobra planeta afora são meros chefes de Estado, alguns terrivelmente genocidas, outros bem-intencionados, em busca de um asterisco na História.

Fará falta a estatura da chanceler que desarmou a crise de 2014 entre a Ucrânia e a Rússia, ao tornar-se o único canal diplomático confiável entre Vladimir Putin e o então presidente americano Barack Obama. Sabia interpretar as reais intenções de cada um. Sobretudo, conhecia a sinuosidade verbal de Putin — como os dois falam russo e alemão fluentemente, dispensavam intérpretes quando necessário. Respeitavam-se. Como bom agente da antiga KGB, o russo aprendera a reconhecer o controle de Merkel em situações de pânico, pois a submetera a um teste de “diplomacia psicológica” aprendido em seus tempos de espionagem. Ao recebê-la em seu palácio de verão de Sochi, o anfitrião Putin adentrou o salão acompanhado de Koni, imensa cadela preta apresentada como membro da família. Sabia que Merkel sofria de cinofobia, nome dado ao medo irracional de cães, mas que, no caso da chanceler, não era tão irracional assim, pois fora mordida por um canino quando criança. Por ser da raça labrador, Koni era dócil e rodeava a cadeira em que Merkel se mantinha imóvel, querendo fazer amizade. Para Merkel, momentos aterrorizantes. Mas não pestanejou.

Doutora em química quântica pela Universidade Karl Marx (hoje Universidade de Leipzig), na antiga Alemanha Oriental, a chanceler foi a líder europeia mais bem preparada para encarar a chegada da Covid-19. Manteve o foco na ciência. Desde os primeiros estágios da pandemia, estudou recomendações de 26 acadêmicos multidisciplinares (inclusive do campo da ética médica) e traçou uma estratégia conjunta com os 16 governadores do Estado alemão.

O lockdown inicial foi radical e custoso para a economia, mas deu certo. A reabertura por etapas que se seguiu foi cautelosa, também deu certo. Apenas às vésperas da Páscoa deste ano Merkel tomou uma decisão apressada, com falhas de planejamento: anunciou novo fechamento do país durante cinco dias para conter uma terceira onda da pandemia. Levou tanto chumbo por 24 horas, com críticas de empresários, epidemiologistas e políticos, que decidiu falar à nação no dia seguinte:

—Um erro deve ser chamado de erro e, sobretudo, precisa ser corrigido, se possível a tempo — disse, informando a revogação da medida. — Lamento muito e peço desculpas por ter provocado incerteza em todos os cidadãos.

Coube a Katrin Bennhold, do New York Times, dimensionar com singeleza o legado mais duradouro de Merkel para a História — a gratidão do milhão de refugiados a quem a chanceler abriu as portas da Alemanha em 2015-2016, enquanto o resto da Europa se fechava como ostra. A reportagem começa com o testemunho de Hibaja Maai, que partiu grávida e com três crianças de uma Síria em destroços, encarou o Mediterrâneo, marchou por Macedônia, Sérvia, Hungria e Áustria, até cruzar a fronteira da Baviera. Ali pariu. Deu à bebê o nome de Angela.

Na Alemanha de hoje, há várias crianças de 5 ou 6 anos de sobrenomes árabes com nomes de batismo que vão de Angie a Merkel, Angela Merkel por inteiro ou apenas Angela. Uma refugiada camaronesa que deu ao filho nascido na Alemanha o nome de Cristo Merkel explica: a chanceler fora a salvadora daquelas vidas.

—Nossos filhos haverão de contar a seus filhos a história desses nomes. E, quem sabe, [dessa geração de netos,] talvez apareça um que governará este país com isso em mente.

—Ela foi nossa mãe — diz outra desenraizada e acolhida.

Forte e simples. Quisera algum errante na fronteira México-EUA poder dizer o mesmo.

Ainda sentiremos muita falta dessa mulher que nunca foi mãe, mas governou como um Mensch. Um ser intrinsecamente humano nos momentos mais decisivos.

O Globo

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