Ele (Bolsonaro) se isolou ao defender, obsessivamente, que houve fraude na eleição
Por João Gabriel de Lima* (foto)
“Entre mim e Maquiavel existe uma grande diferença: eu fui príncipe, ele não.” A frase, dita às gargalhadas, é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em uma mesa na Flip de Paraty, anos atrás. Maquiavel só conhecia o poder em teoria. Fernando Henrique, que o exerceu na prática, não perdeu a piada.
Acaba de sair no Brasil um ótimo ensaio sobre Maquiavel e os dias de hoje. Seu autor é o filósofo Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. As perguntas que o livro procura responder estão sugeridas no título, “Maquiavel, a democracia e o Brasil”. Até que ponto a obra de Maquiavel, escrita num contexto absolutista, vale para governos democráticos? Suas ideias se aplicam ao Brasil atual?
Parte do pensamento de Maquiavel se estrutura sobre os conceitos de “fortuna” e “virtù”. “Fortuna” são as circunstâncias que possibilitam a ascensão do governante. A ideia de “virtù” é mais complexa. “Trata-se da ação planejada para conquistar e manter o poder”, explica Janine, entrevistado no minipodcast da semana. “A palavra remete também à ideia de virilidade.”
O livro mostra que a “virtù” predominou na trajetória de alguns presidentes brasileiros, como Collor, Lula e o próprio Fernando Henrique. Já as ascensões de Sarney e Bolsonaro são principalmente fruto de “fortuna”.
Em 2018, o atual presidente agregou o voto útil dos conservadores contra o PT, após o atentado que sofreu em Juiz de Fora.
Pode ser que Bolsonaro esteja perdendo justamente esse voto útil. Ele se isolou ao defender, obsessivamente, que houve fraude na eleição em que foi derrotado. Tal acusação sem provas não encontrou eco entre governadores do campo conservador, que pouco a pouco vêm abandonando a seara bolsonarista, como mostrou o Estadão em reportagem nesta semana.
A mentira da fraude eleitoral é a cola a unir os manifestantes que, entre a lama, a chuva e o fedor dos banheiros químicos, defendem um golpe militar contra a democracia. Enquanto o presidente se isola com seus extremistas, cresce a disputa pelo voto dos conservadores que rejeitam o bloqueio de estradas e o que o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, chamou de “baderna”. Esses eleitores vêm perdendo identificação com Bolsonaro, e vários governadores recém-eleitos são potenciais presidenciáveis em 2026.
O isolamento do presidente mostra que talvez lhe falte “virtù”, na acepção estrita de virilidade e estratégia, para unir e liderar as direitas na oposição a Lula. Como Fernando Henrique, Bolsonaro pode ter sido príncipe, mas não é maquiavélico – nem no mau nem no bom sentido do termo.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em ciência política na Universidade de Lisboa
O Estado de São Paulo