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domingo, novembro 27, 2022

Um romance que é como o Brasil




O Brasil independente tem 200 anos, e está na hora de encarar os fantasmas de nosso passado

Por João Gabriel de Lima* (foto)

A escritora Maria Firmina dos Reis nasceu em 1822, mesmo ano em que d. Pedro I deu o grito do Ipiranga. No ano em que se comemora o bicentenário da Independência de nosso país, vale ler o romance Úrsula, publicado pela primeira vez em 1859. Maria Firmina dos Reis é a autora homenageada na Festa Literária de Paraty, a Flip, que ocorre nesta semana na cidade histórica fluminense.

O romance Úrsula é um pouco como o Brasil. Aparentemente, trata-se de um folhetim sobre o amor impossível entre a personagem-título, que sofre nas mãos de um vilão cruel, e seu interesse romântico, o bacharel Tancredo. À medida que a história se desenrola, instalase um núcleo secundário, como nas tramas da televisão. O jovem Túlio, o atormentado Antero e a experiente Mãe Suzana aos poucos roubam a cena. Os três são negros escravizados. Irrompem em meio à fantasia romântica para mostrar a face real do Brasil do século 19.

Num dos capítulos mais impactantes de Úrsula, Mãe Susana conta como foi arrancada de sua África natal e padeceu em meio à fome e à sujeira num navio negreiro. É um dos poucos relatos de um personagem escravizado na literatura brasileira, numa época em que o trabalho cativo era a base de nossa economia.

“Esse livro é importante porque mostra como, mesmo no século 19, nem todos achavam que a escravidão era natural”, diz Fernanda Bastos, entrevistada no minipodcast da semana. “É uma autora negra fazendo uma denúncia social.”

Fernanda é uma das curadoras da Flip e também a responsável pela reedição recente de Úrsula pela editora Figura de Linguagem. Em 20 anos de Flip, é a primeira vez que a homenageada é uma autora negra.

Como a economista Zeina Latif lembrou semanas atrás nesta coluna, o racismo e a escravidão estão na raiz de várias mazelas nacionais, entre elas a dificuldade em criar um sistema de educação pública de qualidade. É importante que tais temas sejam debatidos num espaço como a Flip. Em entrevista à coluna, o jornalista e escritor Laurentino Gomes advogou que o Brasil deveria ter um museu da escravidão, para nos lembrar da herança infame com a qual lidamos.

O Brasil independente tem 200 anos, e está mais do que na hora de encarar os fantasmas de nosso passado. Eles são responsáveis pelo maior déficit que precisamos combater, que é o déficit de cidadania. Maria Firmina dos Reis, a homenageada da Flip, nos lembra que nosso país não pode ser como o enredo de Úrsula, onde um folhetim romântico é fachada para uma realidade de pobreza e exclusão – realidade vivida por milhões de brasileiros.

*Escritor, professor da Faap e doutorando em ciência política na Universidade de Lisboa

O Estado de São Paulo

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