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sábado, maio 28, 2022

Putin usa a fome como arma - Editorial




Depois de agressão à Ucrânia, ameaças nucleares e atrocidades contra civis, Putin quer chantagear o mundo com a fome

Já virou folclore: o “Putin Versteher”, como dizem os alemães. Literalmente, um “entendedor” de Putin. Eles creem poder justificar os motivos e a visão de mundo do autocrata russo e projetam vastos mosaicos geopolíticos para extrair lógica do caos precipitado na Ucrânia. Os mais iconoclastas culpam o Ocidente pela catástrofe, os moderados equiparam as responsabilidades. Alguns condenam a agressão. Mas há sempre um “mas”.

A verdade incontestável é que a guerra foi não provocada. O próprio Vladimir Putin o admite, ao manufaturar o conceito de “agressão preventiva”. E nenhum “realismo” geopolítico pode justificar as atrocidades em Bucha ou Mariupol. Mesmo que, em tese, a guerra fosse inevitável, crimes de guerra nunca deixarão de ser crimes.

Abalos nas cadeias de fornecimento talvez fossem inevitáveis. Mas a escassez de alimentos não era. Putin não precisava usar a fome como arma. Tendo falhado em dominar militarmente a Ucrânia, quer estrangulá-la economicamente, confiscando grãos e maquinários. Mais do que isso, está bloqueando o Mar Negro e retendo grãos na Rússia para chantagear o mundo.

O secretário-geral da ONU prevê um “furacão de fome”. Estima-se que em novembro até 243 milhões de pessoas podem se juntar ao atual 1,6 bilhão em insegurança alimentar, especialmente em países da África e Oriente Médio sem parte no conflito.

Resolver o problema é responsabilidade de todos. As nações devem manter os mercados abertos. A Europa deve ajudar a Ucrânia a escoar seus grãos por terra. Suprimentos emergenciais devem ser dirigidos aos pobres.

O verdadeiro alívio viria do fim do bloqueio. Uma concertação, talvez envolvendo finalmente China e Índia, precisaria garantir que a Turquia permita escoltas navais no Bósforo, e a Ucrânia retire suas minas em Odessa. Mas tudo depende de que a Rússia autorize os embarques.

A julgar, porém, pelo diagnóstico de Boris Bondarev, que até esta semana integrava a missão russa na ONU, há poucas chances de negociação. “Hoje, o Ministério do Exterior da Rússia não trata de diplomacia. É tudo sobre belicismo, mentiras e ódio”, disse, ao renunciar à carreira diplomática. “Aqueles que conceberam esta guerra querem só uma coisa – permanecer no poder para sempre, viver em pomposos palácios de mau gosto, velejar em iates comparáveis em custo e tonelagem à Marinha Russa, gozando de poder ilimitado e impunidade completa. Para isso estão dispostos a sacrificar quantas vidas forem necessárias.”

Bondarev disse que nunca sentiu tanta vergonha. “A guerra agressiva desencadeada por Putin contra a Ucrânia, e de fato contra todo o Ocidente, não é só um crime contra o povo ucraniano, mas também, talvez, um crime ainda mais grave contra o povo da Rússia, com uma grossa letra Z riscando as esperanças e perspectivas de uma sociedade livre e próspera.”

Em meio à guerra de opiniões, o testemunho de alguém credenciado para se dizer um genuíno “entendedor de Putin” é um choque de realidade a ser assimilado pelas lideranças empenhadas em estratégias para mitigar o impacto dos crimes russos, como a fome mundial.

O Estado de São Paulo

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