Pedro do Coutto
Ao empossar ontem o novo Secretário de Cultura, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a cultura tem de ser desenvolvida de acordo com a preferência da maioria da população. Isso não tem cabimento. As obras de arte e o processo cultural, exemplos não faltam, têm de ser completamente livres, não podendo ser objeto decorrente da intervenção do Estado. O presidente da República acenou com a intervenção estatal, na medida em que defendeu a sintonia da cultura com a vontade da maior parte da população brasileira.
A princípio, parece que ele deseja colocar a evolução da cultura através de um plebiscito ou de uma pesquisa, seja do Ibope ou Datafolha, capaz de tomar o pulso da vontade aparente de todas as classes sociais.
LIVRE CRIAÇÃO – Nada disso pode existir, simplesmente porque as obras de arte são de livre criação, inclusive de gênios como Da Vinci, que transportam a liberdade na concepção de suas obras. Colocar a cultura e a arte num condicionamento assegurado pela vontade estatal, através dos séculos, somente existe no extremismo do nazismo e do comunismo.
Para se ter uma ideia da liberdade essencial no campo da arte basta dizer que através de todos os tempos não se registram casos de uma obra de arte interditada ou censurada que depois, ao passar dos anos, não tenha sido publicada ou exibida livremente. Isso demonstra que a percepção do valor de qualquer obra depende da visão de artistas, os quais, como sempre, estão à frente do seu tempo.
ANOS DE CHUMBO – A censura atingiu várias obras no Brasil de 64 a 85, principalmente no campo da literatura, música, teatro e cinema. Também na televisão, em cuja esfera “Roque Santeiro” passou por várias objeções até que a obra se transformou numa comédia social de alta categoria.
Exemplos não faltam. Na literatura, por exemplo, casos como de “Madame Bovary”, na França, acrescentaM um exemplo de intolerância. O romance “Eu Acuso”, de Emile Zola, é outro caso. Quanto a “Madame Bovary”, Gustave Flaubert respondeu a um processo judicial, isso num país culturalmente forte como é o caso da França. O autor do livro, ao se defender em um tribunal afirmou:”Madame Bovary sou eu”.
MUITA CENSURA – No cinema os exemplos são tantos que preenchem o absurdo da censura ou da interdição. O filme “A Mulher do Padeiro” é emblemático pelo caráter de desinformação sobre a qual repousa o falso moralismo imposto por governos sectários.
No Brasil há exemplos em série, atingindo principalmente obras de Nelson Rodrigues. Os radicais atacavam o conteúdo de peças teatrais sob alegação de que situações expostas não poderiam acontecer na realidade. O livro “O Casamento”, outra obra de Nelson, foi vítima de uma interdição. O crítico José Lino Grunewald sustentou que “O Casamento” era muito mais revolucionário do que aqueles que desejam interditar essa obra.
OS “INTÉRPRETES” – Assim, a cultura e a arte têm sempre pela frente aqueles que se consideram capazes de interpretar a vontade coletiva. Isso, mesmo que a vontade coletiva não possa se constituir em exemplo, simplesmente porque não se pode exigir de segmentos menos informados que possam fazer julgamento sobre a qualidade das obras literárias, do teatro e do cinema.
Como é possível se querer que as obras de James Joyce e Marcel Proust estejam ao alcance da população em geral. Só se chega à obra de arte quando seus autores sentem-se livres para criar. E com essa liberdade, criam produções eternas na cultura dos povos.