Por: Fernando Sampaio
O controle de armas no País é insatisfatório e contribui para a violência e o aumento da criminalidade. O alerta é do presidente da Subcomissão de Armas e Munição da Câmara dos Deputados, Raul Jungmann (PPS-PE). Ele ressalta que o Brasil evoluiu para um controle social, mas não implantou "um sistema hierarquizado" e coordenado para que se possa aplicar o Estatuto do Desarmamento. "Você tem que ser meio discursivo para as pessoas entenderem isso, porque onde tem arma, tem droga, crime organizado e violência", afirma.
Segundo o parlamentar, a implementação do Estatuto do Desarmamento no País "é extremamente precária". Segundo estimativas da subcomissão, o Brasil tem 18 milhões de armas, sendo que aproximadamente sete milhões se encontram em situação irregular. "Apuramos, também, que há enorme desigualdade nos estados sobre formas e maneiras do controle de armas. É uma babel o que se tem a esse respeito", desabafou.
TRIBUNA DA IMPRENSA - O controle de armas e munição no País é satisfatório?
RAUL JUNGMANN - Ele é insatisfatório. Por quê? Em primeiro lugar porque, historicamente, o controle de armas sempre foi durante longo período, décadas, eu diria, algo que era afeto à segurança nacional e controlado pelos militares. O primeiro decreto que tem a esse respeito, disciplinando, é de 1934, no auge do Estado Novo. Para se ter uma idéia, isso vai ser reforçado durante o período militar iniciado em 64. O processo, digamos assim, de controle da sociedade civil, só vai se iniciar nos anos após o regime militar e isso tudo é coroado com o Estatuto do Desarmamento, que é uma lei de 2003.
Entretanto, o Estatuto do Desarmamento preconiza como comando, cabeça do sistema, digamos assim, um amplo banco de dados, que é o Sinarm (Sistema Nacional de Controle de Armas, da Polícia Federal). O que acontece: o Sinarm deveria ter subordinado o Sigma, que é exatamente o mesmo serviço de controle de armas leves, pertencentes aos policiais civis, militares e membros das Forças Armadas. O Sigma até hoje não se conectou ao Sinarm. Há uma resistência por parte, até aqui, dos militares.
Além disso, o próprio Sigma, até onde a gente tem informação, é um banco de dados dos militares, das Forças Armadas, que não teria ainda acessado as armas da Aeronáutica e da Marinha. Portanto, apenas do Exército. Aí se verifica que, além da questão histórica, hoje se tem um sistema com duplicidade de comando.
Além dessa duplicidade de comando, há algum outro problema relevante?
É o seguinte: pelo Estatuto do Desarmamento, a atribuição de porte e posse de armas passou a ser da Polícia Federal, e ela passou a centralizar todos os registros. Mas acontece que os estados não vêm abastecendo o Sinarm e não existe nenhuma punição. Tem, portanto, em decorrência, um sistema que é desarticulado, muito amplo. Além disso, você precisa ter a articulação com a Polícia Rodoviária Federal, um sistema que tem que funcionar e envolver o próprio Itamaraty, e a negociação de acordos para que não aconteça exatamente o efeito bumerangue: armas brasileiras são exportadas, por exemplo, para o Paraguai e retornam para cá.Você tem que ter um controle. Não há uma transparência no controle de exportação de armas do Brasil para o exterior.
Os registros que são efetuados pela Cacex e que têm, digamos assim, o controle dos militares, não são suficientemente transparentes. Há também um problema decorrente da fiscalização das lojas que vendem armas, de colecionadores e também naquilo que diz respeito a clubes de tiro. Então, como eu procurei demonstrar aqui, o Brasil evoluiu para um controle social, mas não implantou um sistema hierarquizado e coordenado para que possa aplicar o Estatuto do Desarmamento, e daí resulta nessa situação. Você tem que ser meio discursivo para as pessoas entenderem isso, porque onde tem arma, tem droga, crime organizado e violência.
Quais as medidas urgentes para se evitar o desvio de armamento de áreas da segurança pública?
A primeira delas foi apresentada durante audiência que tive agora com o ministro da Defesa (Nelson Jobim), que é revogação da Portaria nº 616, do regime militar, que vem sendo reeditada e foi reeditada pela última vez em 1992. Essa portaria permite que policiais civis, militares, suboficiais e oficiais das Forças Armadas adquiram a preço de custo e intermediados pela suas instituições, ou seja, os quartéis, até - no caso de policiais militares - três armas a cada dois anos, além de uma grande quantidade de cartuchos e pólvora in natura.
Então, daí decorre que você tenha uma grande liquidez, vamos dizer assim, um excesso de armas nas mãos de policiais militares. Uma parte desses policiais militares e civis presta segurança informal ou clandestina nas grandes cidades, como também esse estoque de armas, ele muitas vezes é perdido, desviado e também ilegalmente vendido e vai parar nas mãos de criminosos. Então, pedimos o cancelamento dessa portaria, e propusemos uma pequena revolução nesse campo.
Qual é a proposta, deputado?
É que o Brasil passe a seguir aquilo que é feito, por exemplo, pelas polícias da França e dos Estados Unidos. Lá é um policial, uma arma. Isso quer dizer que o policial tem durante a sua vida profissional uma arma, que é patrimonial, para serviço, e também para a própria segurança. É que a Portaria 616 tende ao princípio de que o policial precisa ter uma defesa quando está fora ou no serviço. E isso gera essa profusão de armas que são desviadas para o crime. Então, em função disso, apenas uma arma para um policial. Isso é o certo. E, ao mesmo tempo, vai se resolver um enorme problema das próprias polícias militares.
Hoje, por exemplo, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro tem armas suficiente para apenas um terço da corporação. Isso é uma perda enorme de tempo e um grande problema logístico, porque o policial quando vai ser engajado, ele tem que ir no quartel, faz formulário, pega uma arma e sai. E quando voltar ao quartel tem de preencher um formulário para devolvê-la.
Se ele fica apenas com uma arma, se simplifica imensamente tudo isso. Em segundo lugar, se tem uma capacidade muito maior de chegar efetivamente a identificar a autoria de algum crime cometido com a arma do policial.
É também necessário sanar o problema da duplicidade de comando do sistema e o não abastecimento das informações pelos estados. Hoje você tem um grande banco de dados centralizado na Polícia Federal, mas inoperante, porque os estados não mandam as informações.
Então, teria que se montar uma espécie de conselho nacional de controle de armas, com a participação do Exército, da Polícia Federal, do Itamaraty, da Receita Federal, de representantes dos estados e também da Polícia Rodoviária, para que se pudesse centralizar as ações. Em terceiro lugar, teria que resolver o problema das lojas que comercializam armas, ter uma fiscalização muito mais eficiente.
Quais os pontos a serem atacados em seguida?
Além disso, teria que ter uma forte diplomacia para negociar no âmbito do Mercosul com os países que têm fronteiras com o Brasil e onde existe maior ocorrência de tráfico. Negociar uma espécie de "lei marco", no que diz respeito a armas leves. E manter anualmente campanhas de desarmamento, com a participação da sociedade civil.
E cito, por fim, dois problemas que são gravíssimos, inclusive no Rio de Janeiro, que é o problema do estoque de armas. O Rio de Janeiro tem um quarto de um milhão de armas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE), da Polícia Civil, que vem melhorando o seu controle, mas que, em passado recente, foi palco de desvios.
Então, estes estoques de armas estão desrespeitando a lei, porque ela determina que arma apreendida e devidamente periciada deve ser destruída, inclusive publicamente, em 48 horas, e isso não acontece. Arma estocada é arma potencialmente desviada.
E, por último, outro problema que é muito grave: espalhadas pelas comarcas de todo o Brasil se têm armas hoje estocadas na mão da Justiça, na mais absoluta, total e eu diria, em grande parte dos casos, ausência de controle. Então, essas armas apreendidas pela polícia e que ficam à disposição da Justiça, às vezes durante três, cinco, dez, 20 anos, termimam voltando à circulação, e muitas vezes vão para as mãos dos bandidos. Em linhas gerais, esses são os principais pontos que deveriam ser cumpridos.
O que é a Subcomissão de Armas e Munição da Câmara dos Deputados e suas atribuições?
A subcomissão é a única nas Américas. Similar a ela, mas não na sua amplitude, existem três ou quatro no mundo. E ela na verdade está cumprindo o papel que deveria ser do Executivo. Há uma descoordenação. O Ministério da Defesa não senta para conversar, especificamente, com o Ministério da Justiça, que são os dois cabeças do sistema. As polícias estaduais não mandam os dados, e ela (subcomissão) se situa exatamente no centro, para que se tenha a implementação do Estatuto do Desarmamento.
A história da subcomissão começa com a luta dos movimentos de direitos humanos pela paz, que vai desaguar no Estatuto do Desarmamento e, em seguida, no referendo pela não comercialização de armas. O passo seguinte foi a CPI do Tráfico de Armas e Combate ao Crime Organizado, e que nesse último ano desaguou na criação desta subcomissão, que faz parte da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Ela é inteiramente inovadora, e a afirmação da mesma é fundamental para que, enfim, se venha a ter realmente não apenas um instrumento regulador normativo, mas um sistema nacional de controle de armas e munições.
O que a subcomissão apurou de mais importante até agora?
É que a implementação, ou seja, a observação do Estatuto do Desarmamento no País, hoje é extremamente precária, por tudo aquilo que eu disse. Se tem hoje um quadro, onde o Brasil, segundo estimativas, tem 18 milhões de armas e aproximadamente sete milhões dessas armas se encontram em situação irregular. Apuramos, também, que hoje há uma enorme desigualdade nos estados, entre as formas e maneiras de controlar as armas, os indicadores. É uma babel que se tem a esse respeito.
Estamos fazendo um levantamenmto em todos os estados, e já temos 17 dos 27 estados respondendo exatamente sobre o seu sistema de controle de armas. Vamos fazer um ranking de controle de armas no País e divulgá-lo duas vezes por ano. Estamos, ao mesmo tempo, finalizando um levantamento de dados sobre rastreamento de armas provindas do estrangeiro. Estamos fechando um rastreamento com a Glock (fábrica de armas), da Àustria, que vai ser importantíssimo para entender o fluxo, as rotas, a dinâmica e como as armas vêm parar no Brasil.
Fechamos ainda um trabalho com o Departamento de Estado dos Estados Unidos a respeito do mesmo tema, ou seja, armas estrangeiras apreendidas nas mãos de bandidos aqui. Também estamos empenhados na discussão dessa "lei marco" no Mercosul, para poder trabalhar a esse respeito. Pedimos ainda informações a todos os tribunais de Justiça do Brasil, sobre onde estão as armas sob custódia da Justiça. Qual é o sistema de controle, quem são os responsáveis pelas mesmas, num levantamento inédito sobre o assunto.
Estamos visitando os governadores e apresentando relatórios de rastreamento de armas encontradas nas mãos de bandidos e apresentando sugestões para que sejam minimizadas, sobretudo, aquelas que provêm das forças de segurança.
Armas de policiais realmente estão armando bandidos?
Infelizmente, estão. Eu diria que num evento de extravio aqui e acolá, seria lamentável, mas seria compreensível. Mas, na medida em que, aproximadamente uma em cada cinco armas apreendidas nas mãos de bandidos provém das forças de segurança, então estamos vivendo uma patologia gravíssima, porque a força de segurança que deveria ser responsável pela proteção do cidadão, na verdade está contribuindo para armar o braço do crime organizado.
O senhor afirma que a falta de controle de armas é parte da violência e do aumento da criminalidade?
Sem qualquer sombra de dúvidas. Nós temos a esse respeito estatísticas que são absolutamente contundentes. Temos hoje no Brasil aproximadamente 57 polícias. São 27 civis, 27 militares, uma rodoviária, uma federal e uma ferroviária. Elas não têm uma base de dados, indicadores e referenciais em comum. Então, o que acontece: se você não tem dados, indicadores, isso é uma babel. Hoje, se você pedir a qualquer instância os homicídios que aconteceram, qual é o grau, se caiu e tal, o sistema de segurança não é capaz de dizer isso.
Por incrível que pareça, os melhores indicadores a respeito de homicídios no Brasil estão no Ministério da Saúde, quando ele publica anualmente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) o resultado de mortes violentas por arma de fogo. É a melhor estatística que você tem. O setor de segurança não é capaz de produzir isso.
Então, você tinha uma curva altamente crescente, há mais de décadas, de homicídios por arma de fogo no Brasil, nos colocando entre os líderes mundiais, exatamente nessa situação. A primeira vez que essa curva quebra, que isso cai, é quando você tem o Estatuto do Desarmamento em 2003, a campanha de entrega voluntária de armas, o referendo.
O brasileiro, acho que até recentemente, via a arma como se fosse um eletrodoméstico, que se pode ter em casa, mas não algo que mata, fere, destrói. Essa naturalidade, acho que ela vem sendo destruida. Além disso, ver os desvios de armas, fazer o rastreamento, montar um sistema, isso é importante. Por fim, a arma é, de certa forma, o principal instrumento do crime organizado. Onde tem armas, tem necessariamente crime organizado, tráfico e violência.
O senhor não gostou do que viu durante a visita que fez à Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE), do Rio de Janeiro? Por quê?
O que nós verificamos, à época - e me parece que ocorreram avanços de lá prá cá -, era uma situação do mais completo, total descontrole. Na verdade, uma situação caótica. Dezenas, centenas de milhares de armas espalhadas por todos os cantos, penduradas em pregos. Se você, inclusive, ver aquele filme "Notícias de uma guerra particular", tem lá as cenas no DFAE, você vai ver corredores, salas, repletas até o teto de armas penduradas em pregos, com apenas uma pequena cartolina pendurada com o número colocado ali, e evidentemente que o controle era baixíssimo.
Aliás, recentemente foi descoberto que o penúltimo diretor da DFAE, que era um policial com bastante tempo na própria Casa, fazia parte do desvio de armas clandestino. A verdade é a seguinte: você não pode ter estoque de armas. E ali talvez tenha o maior estoque de armas do Brasil. Deveriam ser destruídas, como prevê a lei, mas isso não vem acontecendo. São armas que, mais dia menos dia, podem parar nas mãos do crime organizado, que vai lá adiante tirar a vida de um cidadão, de uma mulher, de uma criança.
Fonte: Tribuna da Imprensa
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