Ed. #74 | Segunda-feira, 05 de fevereiro de Eu me lembro exatamente do momento em que soube do desaparecimento de Dom Phillips na Amazônia. Uma jornalista da Pública, que coordenava nosso centro cultural no Rio de Janeiro, me chamou no WhatsApp e me perguntou se eu sabia da notícia. Senti um aperto no peito. Dom Phillips era parceiro nosso, organizara diversas reuniões na Casa Pública junto aos correspondentes estrangeiros.
Mais do que isso. Eu senti porque me vi naquele seu lugar, metida em comunidades da Amazônia sempre rodeadas de rios e de vida, fazendo perguntas incômodas. Porque os nossos repórteres estiveram lá; porque tivemos que retirar jornalistas de locais perigosos durante o governo Bolsonaro; porque lembramos dos cheiros daquela floresta insuperável. Porque entendemos, de maneira profunda, na nossa memória corporal e afetiva, o que significa aquele terror de se sentir vulnerável, longe de qualquer ajuda – e o pesadelo que é aquele medo se realizar, enfim.
Agora, mais de 100 dias depois do início da invasão de Israel à faixa de Gaza, me sinto incapaz de chorar pelas jornalistas que ali estão sendo assassinadas, e isso me corrói. Não as conheci, não tenho referência sobre elas; então o dado alarmante que eu leio em um relatório que recebi por email me parece um documento sem cara. Apenas no mês de dezembro, seis jornalistas palestinas foram assassinadas pelas forças israelenses em Gaza. Em novembro, quatro foram assassinadas; em outubro, três.
Quem acompanha esses dados sobre ameaças a violência contra jornalistas sabe que a morte de seis jornalistas mulheres revela uma hecatombe. Isso porque, sempre minoritárias em campo, elas (nós) sofrem inúmeras outras violências até conseguirem ser vistas como merecedoras do título da nossa profissão. E também porque, se houve 6 mulheres, haverá mais, muito mais, homens jornalistas assassinados.
O levantamento é da organização Coalition for Women in Journalism e revela, mais que a brutalidade da guerra, a brutalidade da nossa percepção sobre a guerra.
Às vezes, os números podem contar uma história. Vejamos. No total, foram assassinados 76 jornalistas palestinos em Gaza em pouco mais de cem dias de guerra, segundo o Center for the Protection of Journalists (CPJ). Na Ucrânia, em um conflito que já dura dois anos, morreram 15 jornalistas, no total, segundo artigo do site Nieman Lab, ligado à universidade de Havard, que chama esse fato de “crime de guerra”. Não se vê a mesma expressão sobre as jornalistas e os jornalistas palestinos.
Mas os números não contemplam o horror que significa essa realidade. (Uma palavra é genocídio, que condiz com a definição da Convenção para a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio; mas um processo foi aberto na Corte de Haia na semana passada para deliberar se houve esse crime, aos olhos do tribunal: e as discussões marcadas pelas pressões americanas e israelenses devem se arrastar por anos).
E a censura ou autocensura que vem dos países do Norte Global se reflete na nossa imprensa, consciente ou inconscientemente, afeta nosso olhar sobre essas mulheres, que perderam não apenas a vida, perderam suas casas, perderam suas famílias.
Shima el-Gazzar era uma jornalista da rede Al-Majd, pertencente a um empresário saudita e que transmite para o mundo árabe, com escritórios Dubai, Amã, Rabat, Bagdá, Damasco e Beirute. Morreu em 3 de dezembro ao lado de membros de sua família em um ataque aéreo em Rafah, no sul da Faixa de Gaza.
Ola Atallah também morreu ao lado da sua família. Entretanto, ela foi alvejada em um ataque aéreo direcionado ao local para onde eles já haviam sido deslocados por força da invasão Israelense, no bairro Al-Daraj, a leste da Cidade de Gaza, em 9 de dezembro. Sair de sua casa, abandonar tudo, não lhe trouxe salvação.
No mesmo dia, Dua al-Cebbur morreu em um ataque aéreo, juntamente com seu marido e seus filhos, na cidade de Khan Younis, ao sul de Gaza.
Quatro dias depois, Nermin Qawwas, que trabalhava como correspondente do canal Russia Today, financiado pelo estado russo, morreu quando uma bomba atingiu sua casa.
Naquele dia também morreram a jornalista Hanan Ayyad e seu marido, atingidos por um ataque aéreo à cidade antiga de Gaza, onde moravam. Seus dois filhos sobreviveram, órfãos.
Haneen Ali al-Qutshan morreu no domingo, 17 de dezembro, durante um ataque aéreo ao campo de refugiados de Nuseirat, onde ela estava vivendo. Outros membros da sua família também morreram.
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