Por Mafalda Anjos (foto)
“A única política natural da Rússia em relação ao Ocidente tem de ser não procurar uma aliança com as potências ocidentais, mas a sua desunião e divisão. Só assim não serão hostis para connosco, não, claro, por convicção mas por impotência.” A frase – tão atual – é de Fyodor Tyutchev, o poeta, filósofo e diplomata russo do século XIX que também disse que “com a razão não se entende a Rússia”.
É um facto. Para se perceber a Rússia, Putin e a sua relação com o mundo é preciso perceber a sua geografia e a sua história. Este é um território enorme, que desde o século XVI é o maior país do planeta e ocupa uma zona estratégica entre dois continentes, a que se veio a chamar Eurásia, que se estende por 11 fusos horários e tem apenas uma delimitação natural que é o mar Ártico. Como bem explica Angela Stent no magnífico Putin’s World, um livro obrigatório para perceber a relação da Rússia com o Ocidente, a essência deste país está intimamente ligada à noção de resistência e de conquista, já que desde sempre teve de definir e proteger as suas fronteiras fluidas, avançando em território inimigo. A mentalidade imperialista faz parte da ideia de excecionalidade russa e é vista como uma questão de sobrevivência. Dominação ou morte. Tal como faz parte o autoritarismo: para governar num país tão vasto e vulnerável a ameaças externas e internas, era preciso mão de ferro.
“O que para de crescer começa a apodrecer. Tenho de expandir as minhas fronteiras para proteger o meu território”, percebeu cedo Catarina, a Grande, a princesa alemã que se transformou na toda-poderosa imperatriz russa do século XVIII, lutou contra os impérios otomano e persa e tomou os territórios da Crimeia e da Novorossiya.
Este autoritarismo, que apenas teve um breve interregno com Ieltsin e Gorbatchev, foi retomado em todo o seu esplendor com Putin. Ele nunca digeriu a dupla humilhação da perda do império e do estatuto pós-queda da União Soviética, com o desmembramento e a perda de 15 estados que se tornaram independentes e o facto de os Estados Unidos e os seus aliados criarem uma ordem global à qual a Rússia teria de se conformar e adaptar. Para recuperar a grandeza momentaneamente perdida com o fim da URSS, era preciso recuperar patriotismo, ambição e glória, valores que se traduzem em crescente esfera de influência e, sim, território, como ficou claro em 2014 com a anexação da Crimeia. Fatores que, a seu ver, foram a cola e o cimento que ao longo dos séculos uniram aquele país.
Esta nova “ideia russa” foi o que esteve subjacente à criação de organizações de propaganda e influência como a Russky Mir (que significa mundo russo), em 2007 – com ramificações até Portugal, como se viu no caso de Setúbal. Um mundo de orgulho numa civilização vista como única e num passado convenientemente mitificado e moldado, que enfatiza tradição e patriotismo, para parecer ainda mais grandioso.
Neste novo mundo russo, há um valor que sobressai: o conservadorismo. “A Rússia de Putin definiu o seu lugar no mundo como o líder dos ‘conservadores internacionais’, suportando Estados que defendem ‘valores tradicionais’, e como protetor de líderes que se debatam com levantamentos populares contra governos autoritários, que Putin acredita que são orquestrados pelo Ocidente”, diz Stent. É uma Rússia defensora do statu quo – contra o que é visto como um Ocidente revisionista e decadente.
Ao mesmo tempo que Putin quer manter o statu quo nos Estados autoritários que não lhe fazem frente, tenta minar por dentro as democracias que podem ser ameaças ou “maus exemplos”. As táticas de Putin nesta missão são claras: fazer interferências nas eleições ocidentais, apoiar movimentos separatistas e antiunião europeia, incentivar grupos nos dois extremos do espetro político – os populistas da extrema-direita e a extrema-esquerda, seja a nova ou a velha, parada no tempo, que ainda lê pelos manuais dos antigos comunistas e que não quer perceber que a Rússia agora é fascista. O objetivo é só um: lançar o caos, como propunha Fyodor Tyutchev há quase dois séculos.
Há anos que começou esta nova Guerra Fria, um conflito híbrido que opõe a Rússia não apenas aos velhos inimigos EUA e NATO, mas também à Europa e à própria ideia de democracia liberal. Ao seu lado, por esse mundo fora, ficam a papaguear os seus argumentos e a apoiar as suas razões três tipos de grupos políticos ou sociais: os conservadores, os autocratas e os autoritaristas. O maior problema é que não são apenas idiotas úteis ao serviço da estratégia de Putin – na verdade, também sonham em poder fazer o mesmo nos seus países.
SAPO (PT)