A ideia de que o populismo é uma “gripezita” das sociedades políticas ocidentais, que as respectivas classes políticas poderão corrigir e superar desde que se decidam a fazê-lo, é um equívoco.
Por Jaime Nogueira Pinto (foto)
O 25 de Abril, que vai fazer cinquenta anos no ano que vem, tinha como metas programáticas três Dês – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver. A Democratização está aí e, entre escândalos de gabinete e cunhas malparadas, recomenda-se; a Descolonização deverá agora ser avaliada mais pelos descolonizados do que pelos descolonizadores; quanto ao Desenvolvimento, um bom princípio é olhar para a economia portuguesa de há meio século e para o seu lugar relativo entre as outras economias europeias do tempo e ver onde agora estamos. O livro de Nuno Palma sobre As causas do atraso português é um bom guia para o exercício.
Os quatro Dês
Mas agora há outros Dês, os quatro Dês que Roger Eatwell e Matthew Goodwin identificaram em 2019 em Populismo: A revolta contra a democracia liberal e que correspondem às quatro causas ou às quatro “alterações sociais” que estão na base da viragem dos eleitores euro-americanos para o nacional-populismo. São eles a Desconfiança, a Destruição, o Despojamento e o Desalinhamento. Assim apresentados parecem não dizer muito; há, por isso que especificá-los, seguindo os autores.
Por Desconfiança, Eatwell e Goodwin entendem a atitude de muitos eleitores perante “a natureza elitista da democracia liberal”. As classes políticas tradicionais dos Estados Unidos e da União Europeia afastaram-se de grande parte dos eleitores, encerrando-se numa bolha de interesses e representações do mundo alheia às preocupações dos seus representados. Parecem querer coisas que os representados não querem, ou querê-las de um modo que os eleitores não entendem. Por isso, os representados desconfiam dos representantes.
A Destruição prende-se, para os autores, com os ataques às comunidades nacionais, às suas identidades étnico-históricas, aos seus modos de vida. Em muitos países a imigração descontrolada é sentida como uma ameaça pelas comunidades nacionais, perante a indiferença dos políticos do sistema, movidos por interesses económicos sectoriais e excessivamente confiantes na sabedoria dos mercado, o que leva os nacionais a buscar alternativas.
O Despojamento seria também o resultado destas políticas, com determinados grupos, como os trabalhadores industriais, privados dos seus empregos tradicionais e a viverem pior – um retrocesso que, em sociedades habituadas à ideia de progresso geracional (a esperança de que os filhos vivam melhor que os pais) resulta num choque profundo.
Finalmente, e como consequência dos três fenómenos, o último Dê: o Desalinhamento das massas populares em relação aos partidos tradicionais, tidos como incapazes de perceber a realidade e as suas mudanças.
O livro é de 2019 e desde então acentuaram-se estas tendências, embora, em alguns casos, a chegada ao poder de líderes anti-sistémicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, não tenha depois sido reconfirmada nas urnas. Também na Polónia, os nacionais populistas perderam agora o poder.
Mas ainda que a variante nacional-populista tenha perdido a chefia do Estado nas duas grandes nações americanas, os Estados Unidos da América e o Brasil, continua a ser a variante mais importante e poderosa das famílias populistas, de direita ou de esquerda.
Não é difícil perceber o porquê deste progresso: num mundo que se pretende governado por ideais de globalismo, a nação e o nacionalismo são a última protecção das massas populares e da classe média. As esquerdas militantes, nas suas novas devoções identitárias, abandonaram as classes trabalhadoras e os seus interesses por todo um outro folclore reivindicativo. Do mesmo modo, as elites europeias e a burocracia de Bruxelas, que procuram avançar sempre na integração federalizante, veem com receio a subida eleitoral destes movimentos “populistas”, a que procuram colar, com alguma dificuldade, a etiqueta anti-democrática. De um modo geral, quer a Esquerda, quer a “direita liberal” têm procurado arrumar o populismo nascente ou na prateleira das doenças fatais, na secção do fascismo ou até do nazismo, ou na das doenças maçadoras, na secção dos movimentos primitivos, acéfalos, básicos, oportunistas, sem dignidade ideológica – mas passageiros.
Populismo, cesarismo, democracia
Será assim? Uma das dificuldades de caracterização do populismo é que, à força de o termo ser usado em sentido pejorativo pelos seus inimigos e por uma comunidade mediática dominante, aqueles que poderiam, legitimamente, endossar o qualificativo não se afirmam como tal. Um termo assim usado, sem qualquer critério ou intenção que não seja o labelo insultuoso e pejorativo, não é fácil de definir, já que os populistas, de esquerda ou de direita, não se podem reconhecer nele. Podemos recorrer às caracterizações históricas, identificando populismos, por exemplo, na América Latina dos anos 30, 40 e 50 do século passado, com caudilhos como Getúlio Vargas, no Brasil, ou Juan Domingo Perón, na Argentina. Mas até que ponto é que o fascismo italiano não apresenta também aspectos de caudilhismo popular, com o culto de personalidade de Mussolini? E se o populismo está num endeusamento de um “chefe” capaz de interpretar mais e melhor que ninguém os sentimentos e vontades do povo soberano, do verdadeiro povo, a doutrina nacional-socialista do Führer Prinzip, do chefe como intérprete vivo e permanente da comunidade, também poderá qualificar-se como populismo. Bem como a doutrina comunista da “vanguarda esclarecida”, como supremo intérprete e guia do proletariado.
Sem dúvida que haverá no populismo reminiscências dos cesarismos, como quebra da ordem e das magistraturas da República romana, vistas como perturbadoras da autenticidade e da verdade da comunidade. Na ultrapassagem dos quadros médios e sua mediação, o populismo acaba por ser um cesarismo, um mono-arquismo, que pode verificar-se em regimes muito diversos: Luís XIV, Rei Absoluto, encarnava o Estado para o povo francês; como Robespierre, nos meses do Terror, ou Bonaparte depois de Austerlitz. Se Hitler e o nacional-socialismo foram formas de cesarismo popular, então também o foi Estaline, que representava o povo russo, ultrapassando e subordinando, pelo carisma e pelo Terror, as estruturas do Partido Comunista – o Comité Central e o Bureau Político. Assim, o populismo estende-se para lá das ideologias ou pode coexistir com quase todas as ideologias, com exclusão de um conservadorismo ou liberalismo aristocráticos à Chateaubriand ou à Tocqueville, desconfiado dos chefes e das massas. Se Getúlio e Perón foram caudilhos populistas, que dizer de Castro e de Chávez, apesar da cientologia marxista? Patrice Lumumba, Samora Machel, Jonas Savimbi, foram populistas africanos. E Nasser foi o populista da Renascença árabe.
Mas o princípio mono-árquico casava-se com a representação popular sem a mediação do voto, o que não acontece agora.
O populismo, sobretudo o nacional-populismo, tem a vantagem de conciliar uma realidade politicamente determinante na modernidade – a comunidade nacional – com a base de legitimidade euroamericana da soberania popular. Tem também a vantagem de arrumar e neutralizar como “oligarquias” as classes altas mediadoras, os “notáveis” do dinheiro, da sociedade, da política, da cultura.
Será o populismo uma doença crónica da velhice democrática? Será que a dificuldade de impedir o mimetismo globalizante das classes políticas das democracias liberais, a sua funcionalização de interesses, a sua dependência da cultura e da narrativa dominantes, não as condenaram a chamar e a sofrer a reacção populista?
A ideia de que o populismo é uma reacção circunstancial, uma “gripezita” das sociedades políticas ocidentais, que as respectivas classes políticas poderão corrigir e superar desde que se decidam a fazê-lo, é um equívoco. O chamado “momento populista” corresponde a um fenómeno de fundo de reacção a situações que se tornaram insuportáveis para largas franjas da população das sociedades euroamericanas. Os quatro Dês de Roger Eatwell e Matthew Goodwin pretendem catalogar e definir essas causas, mas na reacção, os movimentos chamados populistas estão a reencontrar valores republicanos que nada têm que ver com o discurso político dominante.
São valores de nação, mais do que quaisquer outros; mas também de realismo político perante as ideologias da nova esquerda ligadas aos pânicos climáticos, à manipulação e abstração do género, às práticas inquisitoriais e intimidatórias que promovem e protegem novas e particularmente delirantes utopias.
Todas as grandes correntes ideológicas nasceram da negação do status quo; numa primeira fase como antítese, depois buscando sínteses. A política e as ideias políticas são reactivas: o liberalismo reagiu ao Ancien Régime; o marxismo e o marxismo-leninismo reagiram ao capitalismo; o nacionalismo social procurou unir a nação e os seus valores à justiça no trabalho e ao solidarismo das classes. O populismo ou o neo-populismo nacional começou por ser uma reacção, mas embora já paire de outra forma sobre a Europa, os seus líderes ainda encarnam a negação das oligarquias dominantes.
O avanço dessa reacção, a revisão histórica e política que vai trazer, acabará, no exercício da negação, por redescobrir e renovar as bases e a essência dos valores de afirmação, os valores estruturantes das sociedades euro-americanas. Nem de outro modo poderia ser.
Observador (PT)