Publicado em 1 de novembro de 2022 por Tribuna da Internet
Carlos Maurício Ardissone
Nos últimos tempos, tenho sido constantemente provocado e fustigado por uma questão. Como é possível que pessoas com formação intelectual diferenciada e, ao que tudo indica (ou indicou até hoje), formação moral insuspeita, possam fechar os olhos para certas obviedades em matéria de princípios sobre as quais não deveria caber discussão, nem diferentes visões ou pontos de vista?
Trocando em miúdos, como podem pessoas com caráter e com formação intelectual destacada apoiarem a possível volta de um projeto de poder que assaltou a nação de forma inimaginável e de uma forma tão escancarada e absolutamente inquestionável?
ALTERNATIVA OPOSTA – Não há nada que possa ser dito ou falado sobre a alternativa oposta – verdadeiro, exagerado ou falso – que justifique essa cegueira coletiva e a relativização de malfeitos em tamanha escala. Acho que a resposta está na inteligência, ou na falta dela
(Obs: A erudição e a cultura geral muitas vezes servem como um verniz aparente e social de inteligência, mas devemos ter cuidado para não acharmos que todo erudito é necessariamente alguém com intelecto diferenciado. Muito comum erudito que se comporta como mais inteligente do que de fato é).
Não me entendam mal. Não estou aqui insinuando que as pessoas que insistem nesse caminho sem volta de eleger um malfeitor comprovado e condenado sejam burras e desprovidas de inteligência, pelo menos na acepção mais comum da palavra.
TIPOS DE INTELIGÊNCIA – Isso mesmo, não existe apenas um tipo de inteligência. Raro é encontrar alguém dotado de todas as suas dimensões.
Existe a inteligência inata, congênita que diferencia pessoas com maior e menor potencial intelectual. Existe a inteligência técnica que é a inteligência “assimilada e aperfeiçoada” seja por meio de educação formal ou outro tipo de treinamento, aquela que decorre da combinação do talento (a inteligência inata) com a que é potencializada pelo esforço e pelo aprendizado. Por fim, existe a inteligência emocional, sem a qual pouco ou nada das duas primeiras serve.
Trata-se da capacidade de cada indivíduo ter domínio sobre sua psiquê e orientar da melhor forma a sua inteligência inata e⁄ou a técnica. Exige o desenvolvimento de uma visão holística sobre a humanidade, o ser humano, questões existenciais, espirituais e metafísicas.
MAIORES INIMIGOS – Histórias de vida, rancores, traumas, raivas, ranços, complexos e outros sentimentos da mesma cepa costumam ser os maiores inimigos da inteligência emocional. Permitem que as pessoas caiam em armadilhas ardilosas e tentadoras de habilidosos oportunistas retóricos, como as que são lançadas há décadas por certo inteligente inato do cenário político dessas bandas tupiniquins, com carisma, talento e vocação inegáveis para o que é malévolo e desonesto. Um mestre do disfarce e do engano.
Isso mesmo, pessoas com formação intelectual diferenciada, mas com pouca propensão a realizar uma imersão e uma autocrítica profundas sobre a sua própria inteligência emocional, podem ser presas fáceis até para inteligentes inatos sem ou com pouca instrução, quando estes são ladinos e manipuladores.
PhDs, intelectuais, professores, acadêmicos, cientistas, pesquisadores, artistas, invariavelmente dotados de talento (atributo manifesto da inteligência inata) e de conhecimento acumulado (produto manifesto da inteligência técnica), estão sempre dispostos a cair na tentação do sedutor canto da sereia – no caso, do molusco.
CLEPTOCRATA – Isso ajuda a explicar porque no Brasil, há décadas, muitos intelectuais e professores aceitam docilmente integrar as claques de idólatras de um cleptocrata, mostrando publicamente e sem menor pudor que estão desprovidas de senso de ridículo. Histórias de vida e ressentimentos pessoais e familiares acabam por vencer o pensamento analítico, racional e, a depender do déficit de inteligência emocional, até a capacidade de julgamento moral.
Tomemos como exemplo pessoas como Machado de Assis, Luiz Gama e André Rebouças. Em comum entre eles, a origem humilde, a cor de pele escura e a vida em meio a um tecido social hostil e preconceituoso, quando não violento.
Todos venceram esses obstáculos com força e galhardia para se tornarem figuras das mais brilhantes e admiráveis da nossa história. Foram revolucionários com atitudes e feitos e não com verborragia feita de encomenda.
GRANDES EXEMPLOS – Esses brasileiros exemplares não fizeram de suas dificuldades depositórios de ódios que os obstaculizasse e que permitisse que outros tomassem deles o controle sobre suas próprias vidas. Não permitiram que o conhecimento que acumularam e os frutos que colheram pudessem ser desperdiçados e contaminados por lamúrias próprias, familiares, de raça, de classe ou outras quaisquer.
O que não significou, em absoluto, que se deixaram seduzir e cooptar pelo status quo das elites e oligarquias que sempre mandaram no país.
A ascensão social e profissional pela educação, meritória, admirável e associada ao estudo, à pesquisa e ao conhecimento, deveria ser celebrada “tão-somente” (o que não é pouco) como uma conquista pessoal admirável, afável, alegre, conciliadora, aglutinadora, um motivo de celebração social genuína, e não como um tributo aos sacrifícios de vivos ou mortos (parentes ou não), indivíduos ou grupos, minorias ou raças. Não se trata de ingratidão com pais que fizeram sacrifícios ou alienação de classe ou outra, apenas de dar a César o que é de César.
SUPERAÇÃO – O apego e a necessidade costumeira de exaltar o lado da “superação” na realidade representa a incapacidade de gerenciar emocionalmente e lidar com as próprias conquistas e qualidades. É uma vontade inconsciente de permanecer com os pés bem fincados no atraso e associado a sentimentos contraproducentes e mesmo de ódio, a um passado de frustrações e/ou privações das mais diversas que continuam lançando sombra ao que só deveria ser luz. Só atraem maldade ao invés de virtude.
Eis como a inteligência emocional derrota as demais por nocaute. E como um inteligente inato, inclinado para o mal e a corrupção, consegue manipular esses sentimentos. Não é necessário que tenha educação e conhecimento formais. Basta que seja vocacionado politicamente para a retórica e capaz de manipular afetivamente as fragilidades emocionais dos demais que estes se subjugarão aos seus “encantos” de bom grado.
Mais do que isso, desenvolverão por aquele líder um tipo de admiração infantil e cega, como a de uma criança por seu pai. O que determina essa idolatria é o elo de empatia que o líder constrói com suas tristezas e mágoas. Uma escolha que acaricia o coração, mas que envenena a mente por deturpar a razão. Fazer o L acaba por satisfazer mais do que pensar analiticamente e com uma lupa moral minimamente razoável.
(Artigo enviado por Mário Assis Causanilhas)