quarta-feira, julho 30, 2025

O espectro da chantagem: Trump, STF e o cerco político ao Brasil


        * Paulo Baía


No espelho trincado da política brasileira, já não é o bolsonarismo que retorna como sombra difusa do passado. É uma força em pleno vigor, rejuvenescida pela conjuntura internacional e amparada por estratégias articuladas de pressão externa. A polarização nacional, longe de ter se dissipado, transformou-se em epicentro de uma crise política aguda. Ela é alimentada por um novo ator transnacional: o governo de Donald Trump, reconduzido à presidência dos Estados Unidos pelo voto popular e pelo impulso da nova extrema direita global.

O anúncio inicial de tarifas de 50% sobre os produtos brasileiros gerou alarme generalizado. Representava, à primeira vista, uma ofensiva econômica sem precedentes contra o Brasil. O temor tomou conta do agronegócio, da indústria, dos investidores. Mas a tempestade durou menos que um ciclo de notícias. A Casa Branca publicou, com extrema agilidade, uma longa relação de exceções que, na prática, tornou as tarifas nulas para a maioria absoluta das exportações brasileiras. O gesto de força se revelou não como sanção econômica, mas como um aceno simbólico de que as portas comerciais continuam abertas, desde que o Brasil aceite certas condições.

Esse é o ponto. A questão não é mais comercial, tampouco financeira. O que está em jogo é uma chantagem política de alta voltagem. E seu objetivo central é claro: garantir a anistia ampla, geral e irrestrita a Jair Bolsonaro, a seus aliados diretos e a todos os envolvidos na tentativa de subversão da ordem constitucional em 8 de janeiro de 2023. A lógica é a da barganha internacional. Em troca de relações econômicas preservadas, exige-se a submissão institucional do Estado brasileiro à vontade geopolítica da nova Casa Branca. Esse tipo de pressão não é apenas ultrajante. É estruturalmente golpista.

O foco real da investida não é o Palácio do Planalto. É o Supremo Tribunal Federal. É o ministro Alexandre de Moraes. É o sistema de Justiça que ousou responsabilizar os autores de um atentado violento contra a democracia. A máquina de guerra simbólica agora se volta contra aqueles que conduzem os julgamentos do 8 de janeiro. E o faz com instrumentos sofisticados: sanções pessoais, ameaças diplomáticas, constrangimentos públicos, deslegitimação midiática, campanhas internacionais de difamação.

Alexandre de Moraes, relator dos processos, foi incluído de forma brutal na lista de sanções da Lei Global Magnitsky de Responsabilidade pelos Direitos Humanos (Global Magnitsky Human Rights Accountability Act). Seus bens foram congelados em território norte-americano, seu nome vetado em operações bancárias e comerciais nos EUA, seu direito de entrada suspenso. Um magistrado do Supremo Tribunal Federal de um país soberano sendo tratado como inimigo internacional. A mensagem não poderia ser mais clara: o governo dos Estados Unidos quer paralisar a Justiça brasileira. Quer calar os ministros do Supremo. Quer controlar, de fora para dentro, os rumos do Estado de Direito em território nacional.

Mas não é apenas Moraes o alvo. A mira já se estende sobre outros membros da Corte, como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. E, em um segundo plano, sobre os presidentes do Senado Federal, Davi Alcolumbre, e da Câmara dos Deputados, Hugo Mota. O objetivo é desestruturar a tríade republicana. Desmoralizar os pilares institucionais do país. Criar uma atmosfera de cerco, de intimidação, de chantagem permanente. O que se quer não é justiça. É submissão. O que se busca não é equilíbrio democrático. É rendição política.

Nesse tabuleiro, o nome de Eduardo Bolsonaro emerge como peça-chave. O deputado não é apenas o elo com Trump. É o arquiteto de uma internacionalização do bolsonarismo como projeto político global. Sua interlocução direta com Steve Bannon, Elon Musk, Javier Milei, Viktor Orbán e com os think tanks da nova direita norte-americana revela uma estratégia muito mais ampla do que o simples apoio a seu pai. Trata-se da tentativa deliberada de transformar o bolsonarismo em plataforma de um novo eixo ideológico conservador latino-americano, com epicentro no Brasil e sustentação nos EUA.

A atuação de Eduardo é diplomática e militar ao mesmo tempo. Promove seminários internacionais, organiza encontros com líderes populistas autoritários, cultiva a imagem de mártir da liberdade, coordena campanhas difamatórias contra o Judiciário brasileiro e, sobretudo, costura articulações que visam minar a legitimidade da eleição de Lula e das instituições democráticas. É a face mais racional, mais estratégica e mais perigosa do bolsonarismo contemporâneo.

Dentro desse cenário, o Brasil deixa de ser uma nação soberana para se tornar campo de batalha de um projeto geopolítico. Não se trata apenas da volta de Bolsonaro à elegibilidade. Trata-se de garantir que ele retorne em 2026 como símbolo de uma cruzada política: o homem que enfrentou as elites corruptas, os tribunais ditatoriais, os globalistas comunistas, os jornalistas vendidos, e que foi salvo por um movimento internacional liderado por Trump. Essa narrativa já está sendo construída. Ela encontra solo fértil na polarização que nunca cessou no Brasil.

Há um erro recorrente entre analistas e setores da mídia que insistem em anunciar a superação da polarização, como se o governo Lula tivesse, por si só, reunificado o país. Esse é um erro de percepção, de método e de sensibilidade. O Brasil não está em paz. Está em silêncio tenso. A polarização não é uma disputa entre dois polos extremos. É uma fratura simbólica, moral, institucional, cultural, que atravessa o próprio centro da sociedade brasileira.

Em cada igreja, em cada sala de aula, em cada feira, em cada reunião de condomínio, em cada grupo de WhatsApp, o bolsonarismo ainda pulsa. Não como nostalgia, mas como esperança ativa. Não como memória, mas como desejo. Esse desejo é hoje alimentado por uma narrativa de perseguição que encontra ressonância emocional profunda: o homem simples, patriota, traído pelo sistema, perseguido pelos juízes, silenciado pelos jornais. A figura de Bolsonaro é, para milhões, a de um Cristo secular. Torturado pelo STF, crucificado pela imprensa, salvo pelos céus de Washington.

Diante disso, as instituições democráticas brasileiras hesitam. O Congresso teme enfrentar abertamente essa ofensiva. O Executivo opera em modo de contenção. O Judiciário se vê encurralado entre a responsabilidade de julgar e a pressão internacional para recuar. A democracia brasileira está acuada. A soberania nacional, ameaçada. O futuro político do país, sequestrado por uma geopolítica de interferência.

A gravidade do momento exige lucidez. Exige ação coordenada. Exige resistência sem espetáculo. Exige coragem sem cálculo. A política precisa deixar de operar como gestão de crises e assumir seu papel de defesa da república. O STF, com todos os seus limites e contradições, precisa ser defendido como última trincheira do Estado Democrático de Direito. Porque o que se pretende destruir, por meio dessa chantagem internacional, é a própria ideia de Justiça como fundamento do pacto social.

Não haverá tanques nas ruas. Não haverá discursos golpistas televisionados. A destruição virá pela via da legalidade aparente. Pela naturalização do absurdo. Pelo silêncio estratégico das instituições. Pela cumplicidade passiva de setores da elite. Pela despolitização generalizada. Pela crença cega no pragmatismo. Pela cobertura jornalística que transforma crimes em controvérsias e ameaças em opiniões divergentes.

Como advertiu Hannah Arendt, o mal se instala quando o pensamento cessa. E hoje o pensamento cessa diante da chantagem. Cessa diante das exceções tarifárias que parecem boas notícias, mas escondem imposições coloniais. Cessa diante da anistia como saída conciliadora. Cessa diante da ameaça de sanções como se fosse um fato menor. Mas o pensamento não pode cessar. O pensamento precisa nomear. Denunciar. Mobilizar.

O bolsonarismo não é uma anomalia. É uma síntese das pulsões autoritárias que sempre habitaram o Brasil. Sua sobrevivência, agora reforçada por Trump, é prova de que os fantasmas da ditadura nunca foram exorcizados. De que a elite brasileira jamais abraçou a democracia como valor, apenas como conveniência. De que a república continua sendo um projeto inconcluso, vulnerável às tempestades internacionais e às traições internas.

Talvez só a literatura nos salve. Ela, que escuta as entrelinhas. Que enxerga o indizível. Que compreende os subterrâneos. Como Dostoiévski, que revelou que o mal pode habitar os gestos mais cotidianos. Como Faulkner, que nos ensinou que o passado nunca morre. Como Clarice, que mergulhava no não-dito. Como Graciliano, que escreveu o Brasil com a secura da lucidez. Como Lima Barreto, que viu o abismo social antes que ele se tornasse abismo político.

É preciso escrever. Pensar. Denunciar. A democracia brasileira está sitiada. A soberania nacional está sob ataque. A Justiça é o novo campo de batalha. O bolsonarismo, hoje, é uma religião política com fé renovada, recursos internacionais e discurso legitimado. O nome do espectro já está inscrito na história. Mas o futuro ainda pode ser reescrito. Se tivermos coragem de olhar no espelho. E não desviar o rosto

          * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ. 

Em destaque

Extradição de Alexandre Ramagem dos EUA -- Indicação de fonte da FGV Direito Rio

          O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou, nesta segunda-feira (15/12), à Secretaria Judiciária da C...

Mais visitadas