Cézar Feitoza
Folha
O advogado Ives Gandra Martins vai dar uma palestra para militares na Escola Superior de Guerra na quinta-feira (22) com o tema “O Estado Democrático de Direito e o Protagonismo do Judiciário”. O evento ocorre uma semana após a Polícia Federal mostrar, em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, que o advogado foi uma espécie de mentor intelectual de uma minuta de decreto para dar um golpe contra a eleição de Lula (PT).
O documento estava no celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e destacava que o “desmedido ‘ativismo judicial’ e a aparente ‘legalidade’ não podem servir de pretextos para a desvirtuação da ordem constitucional”.
TUDO POR DECRETO – “Diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem”, concluía o documento.
Segundo a Polícia Federal, estudos enviados por militares da ativa e os posicionamentos de Ives Gandra “possivelmente serviram de fundamento para a confecção” dessa minuta.
Um dos documentos repassados a Cid é um e-mail enviado pelo advogado em 2017. Trata-se de uma resposta a questionamentos feitos à época pelo então major Fabiano da Silva Carvalho. O militar era aluno do Curso de Comando e Estado-Maior do Exército, com pesquisa sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais.
PODER MODERADOR – Segundo a tese de Ives Gandra, um dos Poderes pode acionar as Forças Armadas quando estiver em conflito com outro Poder. Os militares, então, deveriam atuar como moderadores para debelar o confronto —tese essa sem nenhum respaldo com a realidade, inclusive segundo decisão do STF.
“[O emprego dos militares] pode ocorrer em situação de normalidade se no conflito entre Poderes, um deles apelar para as Forças Armadas, em não havendo outra solução”, escreveu o advogado ao militar.
Outro documento, intitulado “Forças Armadas como Poder Moderador”, foi enviado por Cid de um telefone que possui para outro. Nele, há uma “síntese da ideia de Ives Gandra”.
ABUSOS DO JUDICIÁRIO – “Violações da Constituição Federal pelo Poder Judiciário deixariam os demais poderes sem capacidade de corrigir a ilegalidade. Diante disso, a base no pensamento do doutrinador está na interpretação de que o art. 142 da Constituição assegura às Forças Armadas o papel de evitar abusos pelo Poder Judiciário”, prossegue o texto apócrifo, que ainda apresenta um passo a passo de como seria a convocação das Forças Armadas como moderadoras.
O advogado Ives Gandra Martins é especialista em direito tributário. Desde a ascensão do bolsonarismo, suas teses sobre as Forças Armadas terem o papel constitucional de atuarem como poder moderador ganharam tração entre apoiadores do ex-presidente.
Nas Forças Armadas, as teses do advogado são difundidas há mais de 30 anos. Ele era professor emérito de Direito Constitucional na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, centro que forma os generais que assumem os cargos principais da Força.
POLÍTICA E ESTRATÉGIA – A palestra desta semana será ministrada no Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia, do qual participam coronéis das três Forças Armadas, policiais, membros do judiciário e funcionários públicos.
Em nota, o Ministério da Defesa disse que o advogado dá palestras como colaborador da instituição.
“A Escola Superior de Guerra é um centro de estudos e a ela não compete a formulação ou execução da política do País. Ressalta-se, ainda, que as atividades da ESG [Escola Superior de Guerra] são de natureza exclusivamente acadêmica e abertas ao debate”, completou.
Generais consultados pela Folha afirmam, sob reserva, que a permanência de Ives Gandra em palestras e aulas nos círculos militares não será evitada após as revelações do relatório da Polícia Federal. Eles citam que o espa ço acadêmico é aberto para opiniões diversas. Assim como Ives Gandra apresenta posições mais alinhadas aos conservadores, há professores considerados progressistas nos corpos docentes.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – “Há controvérsias!”, diria o ator Francisco Milani. Como se sabe, em decisão judicial, o ministro Luiz Fux assinalou que as Forças Armadas não são poder moderador. É uma discussão que vai longe, porque a Constituição é meio confusa e permite essa interpretação defendida por Ives Gandra. O jurista Jorge Béja pode nos dizer quem tem razão. (C.N.)