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sexta-feira, março 21, 2025

Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo


Sonhos no Terceiro Reich | Amazon.com.brJoão Pereira Coutinho
Folha

Alguém dizia que o verdadeiro problema de estar preso é não poder trancar a porta por dentro. Nunca estive preso. Mas imagino que esse seja o maior dos terrores: a porta se abre a qualquer momento para que o Estado exerça a sua violência sobre nós. Em ditadura, deve ser a mesma coisa. Aliás, o que é uma ditadura senão uma prisão coletiva?

O filme “Ainda Estou Aqui” ilustra essa dinâmica na perfeição. Verdade: os jagunços batem à porta dos Paiva. Mas é apenas uma cortesia ilusória.

UM CRIME MAIOR – A invasão do espaço íntimo, com seu cortejo de abusos e boçalidades, é o prelúdio de um crime maior: o assalto a uma família e a destruição física de um dos seus membros.

Para o poder ditatorial, a vida não tem paredes, eis o ponto. Só os sonhos estão a salvo, embora haja quem discorde: a escritora alemã Charlotte Beradt (1907–1986) dedicou-se a registrar os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939 para mostrar os tentáculos invisíveis do totalitarismo.

O resultado é uma obra-prima intitulada “O Terceiro Reich do Sonho”, traduzida para o português por Mário Gomes e publicada pela editora lusa VS. É um dos meus grandes livros do ano.

ESTADO DE EXCEÇÃO – Não há violência física nesses sonhos, porque Beradt optou por não publicar esses relatos. Curiosamente, Walter Salles também ocultou essa dimensão mais primitiva e bárbara. Entendo. Não devemos dar aos algozes a alegria de contemplarem suas próprias atrocidades.

A violência assume outra forma: a transformação do cotidiano em um “estado de exceção”, onde não há lugar para segurança e previsibilidade e onde até os objetos mais banais se tornam provas incriminatórias.

Ou então, em vozes inquisitoriais, repetindo mecanicamente a propaganda do regime ou acusando os indivíduos de suas falhas e misérias, como em “1984”, de George Orwell.

AUTOCONDENAÇÃO – Os alemães sob Hitler sonhavam que as palavras mais inocentes —”eu”, “Deus”, “infelicidade”– os condenavam de imediato. Sonhavam que os próprios pensamentos estavam sob escuta. Sonhavam em língua estrangeira (e estranha) para que nem eles pudessem decifrar o que diziam ou pensavam.

Entre 1933 e 1939, sonhou-se muito com narizes grandes e peles morenas, mesmo entre os “arianos”, como se as dimensões do corpo ou a pigmentação da pele fossem marcas de infâmia.

Documentos ou passaportes eram constantes nesses filmes oníricos. Como se o papel certo, ou errado, fosse a diferença fundamental entre a vida e a morte. Ver os documentos destruídos, perdidos, esquecidos – o maior dos pesadelos, no sentido literal e metafórico.

ATÉ A MATEMÁTICA – E que dizer da professora de matemática que sonhava recorrentemente com uma Alemanha onde até a matemática tinha sido proibida? Ela, apesar de tudo, conseguia ainda escrever algumas equações em segredo, como se os números a mantivessem ligada a uma vida que perdera.

No livro de Beradt, dois sonhos em especial possuem qualidades literárias que os elevam acima de um simples documento histórico. Poderiam ter sido escritos por Kafka, não fosse ele já o autor de todos os pesadelos possíveis.

O primeiro, recorrente, pertence a um industrial alemão, social-democrata, que recebe a visita de Goebbels na sua fábrica. Em frente aos trabalhadores, o homem demora 30 longos minutos a levantar o braço para fazer a saudação nazi.

ESFORÇO DEMASIADO – Numa das versões, o esforço é tanto que o industrial quebra a coluna, como se fosse um boneco enferrujado.

No segundo sonho, um médico antinazista é chamado de urgência para tratar Hitler. O homem vai, cura o ditador, é elogiado por ele – e sente orgulho pelo seu feito ao mesmo tempo em que chora de vergonha por sentir orgulho.

Nos dois casos, a violência não vem apenas do regime, mas também dos próprios indivíduos contra si mesmos. Essa é uma das conclusões de Charlotte Beradt sobre o totalitarismo: o medo e o terror são tão interiorizados que os indivíduos acabam se tornando “cúmplices” involuntários da própria submissão.

HITLER ASSASSINADO – Aliás, se dúvidas houvesse, a autora apenas cartografou um único sonho em que Hitler era assassinado. Matar o tirano era não só indizível como inimaginável.

Nessa galeria de sonhos, Beradt dedica um capítulo aos sonhos dos judeus, que, estranhamente, tragicamente, oscilam entre a tentativa de cortejar as boas graças de Hitler e a imperiosa necessidade de fugir dele. Num desses sonhos, um judeu viaja ao Único País que não Odeia Judeus (assim referido), atravessando as terras geladas da Lapônia. Mas, ao chegar à fronteira da salvação, até essa última porta se fecha na sua cara.

Entre as portas que não conseguimos trancar e aquelas que não conseguimos abrir, que venha o diabo e escolha.


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