O uso da expressão em substituição a "indígenas" foi tomado de empréstimo, pelo presidente eleito, do Movimento ao Socialismo, o partido de Evo Morales.
Por Humberto Vacaflor Ganam*
O presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou várias vezes que criará o Ministério dos Povos Originários. A última delas foi na 27ª Conferência das Partes da ONU para as Mudanças Climáticas, no Egito. “Os povos originários e aqueles que residem na região amazônica devem ser os protagonistas da sua preservação“, disse Lula na COP27.
O termo “originário”, contudo, não é de uso corrente entre os brasileiros. Embora o Dicionário Houaiss aceite o seu uso como “nativo do lugar onde se encontra” e como sinônimo de “indígena”, ele é empregado mais para dizer que alguém é proveniente de um lugar. Pode-se falar, por exemplo, do turista originário de Minas Gerais. A palavra, assim, aparece na linguagem popular normalmente com um complemento. Em seu novo emprego, difundido pelo presidente eleito, “originário” é um adjetivo com um fim em si mesmo. Nessa nova acepção, o termo ainda está engatinhando no Brasil, mas a palavra já tem uma larga trajetória em outros países da América Latina, principalmente em meu país, a Bolívia.
Engana-se, porém, quem pensa que seu uso sempre foi disseminado entre bolivianos. Por aqui, o uso da palavra “originários” para definir os povos indígenas tem sido promovido principalmente pelo governo do Movimento al Socialismo, (MAS), o partido de Evo Morales, com fins eleitorais, para se beneficiar de supostas diferenças raciais na população.
Desde que Morales assumiu o cargo, em 2006, ele decidiu colocar em prática os conselhos do venezuelano Hugo Chávez e mudar tudo o que havia na Bolívia, a começar pelo nome do país. De República da Bolívia, nos tornamos oficialmente o Estado Plurinacional da Bolívia. O presidente também criou uma nova bandeira, a whipala, com as mesmas cores do movimento LGBT internacional. Em vez de listras, o novo símbolo traz quadrados coloridos. Seu intuito não foi o de substituir a bandeira oficial, com as cores vermelho, amarelo e verde, e sim competir com essa.
Morales também se proclamou o “primeiro presidente indígena“, apesar de ter crescido na cidade e de falar apenas o espanhol. Ao mesmo tempo, ele resolveu chamar os indígenas de “originários“, proclamando-os como os primeiros donos do território que merecem gozar de privilégios. Como Lula, Morales ignorou que o adjetivo normalmente é completado com algum substantivo de lugar: originário das serras, dos vales, das selvas etc. Mas ficou por isso mesmo. Além disso, quando Morales menciona os “originários”, ele comete um erro de concordância, pois fala em “povos originárias“, unindo um termo masculino a outro feminino. A questão só não suscita mais críticas porque o político comete muitos outros erros ao falar o espanhol.
Mas dar a essa palavra o significado de “primordial” ou usá-la para se referir aos primeiros habitantes do território suscita muitas dúvidas.
No altiplano, o planalto que integra a Cordilheira dos Andes, os bolivianos que falam a língua quéchua descendem dos incas que chegaram do Peru no século XIII e, portanto, não poderiam ser chamados de “originários” no sentido de primigênios. E os que falam a língua aimará são descendentes de imigrantes que vieram se estabelecer ao longo do Lago Titicaca vindos de Copiapó, hoje território chileno. Os demais habitantes da Bolívia são como outros cidadãos do mundo: descendentes de migrações remotas e constantes.
O propósito de introduzir um elemento de divisão entre os bolivianos foi mais além. Na Constituição que foi alterada em 2009, abandonou-se o objetivo de criar uma “nação boliviana” e foi introduzida a ideia de um “Estado plurinacional”, mencionando 36 pequenas nações. O projeto de criação da nação boliviana foi diluído pelo propósito de estabelecer a sua divisão.
Curiosamente, a lista de nações inclui a dos “matacos“, que habitam as margens do rio Pilcomayo. Esse povo nômade vive da pesca do curimbatá. Para tanto, permanece seis meses do ano em território boliviano e seis meses em território paraguaio. Portanto, a rigor, o Estado Plurinacional da Bolívia teria 35 nações e meia. Um detalhe que não interessa ao Movimento ao Socialismo, MAS.
A ideia, afinal, estava dirigida a discriminar os mestiços, que representam 74% da população. Isso porque alguns desses povos originários têm o privilégio de eleger seus deputados no Parlamento nacional com pouquíssimos votos. São sete deputados dessas cidades, eleitos com menos de 300 votos cada, enquanto nos centros urbanos são necessários pelo menos 160 mil para ter um deputado. Nenhum opositor consegue acesso aos territórios onde vivem os povos “originários“.
Para além do interesse eleitoral, o MAS não fez absolutamente nenhum esforço para construir sua utopia plurinacional. As nações criadas em 2009 não têm constituições, assembleias, congressos ou o que quer que seja. São uma ficção eleitoral e nada mais.
Pois eis que essa invenção do MAS boliviano cruzou as fronteiras.
Os protestos no Chile em 2019, que colocaram em xeque a democracia e frearam o ritmo de crescimento desse país, contaram com a contribuição de assessores bolivianos, além de espanhóis. Agora, como é notório, o governo chileno não sabe como deter os índios mapuches, que querem criar uma república própria, a qual incluiria parte da Patagônia argentina, além da chilena. Sonham ainda em controlar os poços de petróleo e gás natural de Vaca Muerta, na Argentina. São “originários” muito originais.
O presidente peruano Pedro Castillo é um admirador declarado de Evo Morales, o que se reflete em sua atitude permissiva em relação às plantações ilegais de coca e na atitude racista que manteve em sua campanha contra os “não originários” — os brancos e habitantes de Lima.
O anúncio de Lula é uma novidade que não se esperava, pois a tendência “originária” está em crise, principalmente depois das denúncias de indígenas bolivianos afetados pela invasão de empresas chinesas nos rios da Amazônia. Os chineses importaram 700 toneladas de dragas e equipamentos de mineração no ano passado e converteram a Bolívia no maior importador mundial de mercúrio.
Os indígenas da região pedem socorro a todo o mundo. Eles até organizam torneios esportivos, com canoas, para chamar a atenção e mostrar como o mercúrio está envenenando seus rios e florestas. Tudo isso, apesar de o governo do MAS se declarar indígena.
São “originários” buscando alguém que os salve do governo “indígena”.
*Humberto Vacaflor Ganam é jornalista boliviano de Tupiza
Revista Crusoé