Cartas sobre a guerra de Canudos comentadas porJosé Murilo de Carvalho
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Acabam de ser publicadas 70 cartas referentes à guerra de Canudos enviadas ao barão de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins. O livro foi organizado por Consuelo Novais Sampaio, especialista na política baiana da Primeira República, que contribui também com substancioso ensaio introdutório. Foi incluída uma útil nota biográfica sobre o barão, redigida por seu trineto, Álvaro Dantas de Carvalho Jr.. O livro traz ainda cuidadosas notas explicativas e curtas biografias dos missivistas, organizadas por Álvaro Dantas de Carvalho, bisneto e organizador do arquivo do barão.
A publicação seria impecável se tivesse incluído um mapa da região de Canudos, com a localização das propriedades do barão e dos lugares de onde as cartas foram enviadas. O leitor não familiarizado com o tema ou com a região teria sido muito beneficiado por essa simples adição. Como não consta a correspondência ativa do barão, à exceção de uma carta ao filho, teria sido também útil se tivessem sido adicionados seus dois artigos no "Jornal de Notícias" de Salvador, datados de 4 e 5 de março de 1897, muito utilizados, aliás, por Consuelo Novais em sua introdução. A lamentar apenas a não inclusão, por não terem sido entregues pela família, de mais de 40 cartas enviadas ao barão por seu aliado político, José Gonçalves da Silva, primeiro governador constitucional da Bahia.
O barão de Jeremoabo era o maior latifundiário da Bahia, dono de 61 fazendas que cobriam vários municípios entre os rios Itapicuru e São Francisco. Nessa região situava-se Canudos, a Belo Monte do Conselheiro. Duas das fazendas localizavam-se no vizinho estado do Sergipe. Era também um dos donos do engenho central de Bom Jardim, em Santo Amaro, no fundo do Recôncavo.
A família Dantas dominara a política baiana ao final do Império, dividindo seus membros entre o Partido Liberal, cujo chefe era o conselheiro Dantas, primo do barão, e o Partido Conservador, de que o barão era um dos chefes. Bacharel em direito, homem culto, Cícero Dantas guardava as cartas que recebia, anotando data de recepção e de resposta. As cartas agora publicadas foram escritas por parentes, compadres, amigos, aliados políticos. Quase todos proprietários rurais, oficiais da Guarda Nacional, políticos, juízes. Gente de sua classe social. A única exceção é a carta de um vaqueiro.
Sinceridade dos missivistas
Na ausência da correspondência ativa do barão, poderia ser levantada a dúvida sobre a sinceridade dos que lhe escreviam. Estavam eles dando sua própria opinião ou dizendo o que o chefe queria ouvir? A homogeneidade social do grupo e a intimidade de muitos missivistas, primos, compadres e amigos, são um bom argumento a favor de sua sinceridade e da validade das cartas como representação da visão da classe dos proprietários sobre o Conselheiro e sua gente. Não há nas cartas jogo de cena, não há cálculo político, não há construção.
Aí está, de fato, a originalidade e a extraordinária riqueza do material agora posto ao alcance de pesquisadores e do grande público. A mesma segurança quanto à natureza da correspondência talvez não seja autorizada quando se trata de examinar a visão do grupo sobre a política baiana. A correta determinação dessa visão fica prejudicada pela ausência das cartas de José Gonçalves da Silva.
Pode-se dizer que as cartas não trazem grandes novidades na temática conselheirista tal como aparece nas discussões da historiografia recente. Essa historiografia, "deseuclidianizada", foi inaugurada por José Calazans, a quem Consuelo Novais justamente homenageia na introdução. Elas confirmam, por exemplo, a importância da competição oligárquica local e da política nacional. O combate ao Conselheiro era indissociável da briga do barão e do partido "gonçalvista" contra o "vianista", controlado pelo governador do Estado, Luís Viana, que tinha um aliado na vice-Presidência da República.
Elas oferecem farta evidência sobre a preocupação dos fazendeiros, e até mesmo dos intendentes municipais, com a fuga da mão-de-obra. Elas são também vivo testemunho do medo que se apoderou dos fazendeiros e autoridades à medida que os êxitos militares revelavam as dimensões reais do movimento.
Confirmam a violência da luta e a degola de prisioneiros. José Américo, coronel da Guarda Nacional, anticonselheirista histérico, fala em mais de 200 degolados em dois ou três dias após a queda do arraial. E ainda reclama de terem escapado mulheres e crianças: "Devia era tudo ser degolado".
Para efeito desses comentários, seleciono alguns pontos que, a meu ver, trazem maior novidade ou ajudam a esclarecer questões ainda polêmicas. Começo pela quase ausência na correspondência da questão da monarquia e da república. Em relação ao Conselheiro, os correspondentes usam todos os xingamentos, fanático, bandido, pobre-diabo, piolhento, monstro, Antônio da Malvadeza, menos o de monarquista.
A questão aparece em cartas enviadas do Rio de Janeiro. Em uma delas há a informação de que o jornal "O Jacobino" acusara o próprio barão de monarquista encapotado. Sabia-se que o Conselheiro falava contra a República e não gostava de republicanos, mas o complô monarquista foi invenção do Rio de Janeiro, com o quê os fazendeiros locais não se preocupavam muito.
O povo de 13 de maio
Por outro lado, um ponto ocultado por Euclides aparece com clareza. Refiro-me à presença de muitos negros e ex-escravos entre os conselheiristas. O escrivão Antero de Cirqueira Galo refere-se em março de 1897 ao "povo de 13 de maio, que é a maior parte" dos seguidores do Conselheiro. No mesmo mês e ano, o comerciante Manuel F. Menezes diz estar aguardando o ataque dos "carijés", isto é, dos ex-escravos. Três anos antes, em 1894, o coronel José Américo já falava do povo miserável de Canudos, "tudo que foi escravo, tudo que é criminoso".
Euclides não viu negros entre os prisioneiros entregues pelo Beatinho no dia 2 de outubro: "Raro um branco ou um negro puro (...), a fusão perfeita das três raças". A forte presença de negros atrapalharia suas idéias sobre os sertanejos como fusão étnica, a rocha viva de nossa raça. Assim como já tinha lido de maneira torta a teoria da luta de raças de Glumpowicz, como demonstrou Luiz Costa Lima, Euclides também enxergou mal a cor dos conselheiristas em benefício de suas teorias raciais.
Um dos pontos importantes da correspondência é a rica evidência sobre o êxodo para Canudos. Na primeira carta da coleção, datada de janeiro de 1894, o intendente de Tucano queixa-se da saída de umas 16 ou 20 famílias, e comenta: "É um horror!". Em fevereiro, o coronel Aristides, de Vitória, fala em despovoamento devido ao êxodo para Canudos. Em dezembro desse ano, o juiz de direito de Itapicuru informa que "continua em grosso o êxodo para os Canudos". Em janeiro de 1895, o mesmo intendente de Tucano diz não haver mais trabalhadores, e o de Monte Santo confirma que é constante a concorrência do povo para o arraial.
Nosso já conhecido coronel José Américo, primo e compadre do barão, escrevendo provavelmente do Rosário, em janeiro de 1896, comenta que o Conselheiro "ontem subiu com um povo imenso (...). Pessoas que nunca julguei acompanhá-lo seguiram com ele". O próprio barão, na única carta incluída no livro, escrevendo do engenho de Camuciatá (Itapicuru), diz ao filho em janeiro de 1897: "Depois do combate do Uauá o homem tem recebido reforço grande de toda a parte".
A partir da derrota de Moreira César (março de 1897), no entanto, a situação muda. Correm por todos os lados boatos de ataque dos conselheiristas. Muitas pessoas agora fogem de medo dos jagunços. As cidades e vilas se esvaziam. Após um tal boato, há terror em Tucano, todos fogem: "Esta vila está completamente deserta", informa o escrivão. Ao medo dos conselheiristas vem agregar-se o das tropas do governo, que cometem tropelias e roubos. "No Monte Santo", diz o tenente-coronel Marcelino, "consta que o arraso que há foi da tropa corrida".
O medo, feito pânico após a derrota de Moreira César, tem forte presença nas cartas. Em março de 1894, um compadre manifesta o primeiro receio de perturbações da ordem. No mesmo mês, José Américo calcula em 16 mil os seguidores do Conselheiro. Em janeiro de 1895, o intendente de Monte Santo prevê desenlace perniciosíssimo para o movimento.
Em janeiro de 1896, um juiz de direito fala dos horrores cometidos no Bom Conselho pela gente do Conselheiro. Ainda nesse mês, o vigário de Bom Conselho se confessa incapaz de fazer oposição ao Conselheiro por receio de ser desprestigiado pela população. O próprio barão revela ao filho, em janeiro de 1897, que vive assustado. Em março, o juiz de direito diz que o sobressalto é geral e que todos se preparam para fugir. A partir de julho de 1897, o cerco de Canudos traz alguma tranquilidade, mas surge o receio de violências por parte daqueles que de lá fugiam.
Trata-se de um medo construído, como argumenta Consuelo Novais? Não me parece. As cartas são comunicação pessoal, às vezes íntima, entre parentes e membros da mesma classe social. Não visam o grande público, a imprensa, ou mesmo a população local. Refletem um sentimento que parece autêntico entre proprietários de terra. Além disso, a reunião de milhares de pobres, muitos deles ex-escravos, muitos deles tirados das fazendas, em claro desafio à lei, à Igreja, às autoridades, movidos por uma fé imbatível no Conselheiro, era seguramente ameaça real, tornada mais grave quando os conselheiristas se mostraram capazes de enfrentar com êxito as tropas federais. Eram ameaça à ordem política e sobretudo à ordem social em que se sustentavam os proprietários.
A ânsia do mando
O que intriga o leitor e o analista do mundo do coronelismo é a força da ânsia do mando como fonte do conflito político. Não se sabe quem era mais odiado pela gente do barão, os conselheiristas, que lhes ameaçavam o poder social, ou os "vianistas", que lhes disputavam o poder político. Luís Viana e seu preposto, Rodrigues Lima, são constantemente acusados de manipular o conflito de Canudos para prejudicar o partido do barão, seja quando agem, seja quando deixam de agir. O coletor de Tucano, demitido, escreve em julho de 1897, em plena campanha da 4ª expedição: "Querem a todo transe destruir os amigos de V. Exa. (...), com a maldita questão conselheirista querem formar partido, (...) querendo ser os mandões de todos os tempos".
Em 1895, a luta produzira duplicata de governo no Estado, um chefiado pelo barão de Jeremoabo, outro pelo barão de Camaçari. Os conselheiristas eram ameaça às duas facções, que não se distinguiam pela origem social e os interesses. Mas elas eram incapazes de se unir na luta contra a ameaça comum a seu domínio social.
A repressão acabou vindo da capital da República (onde também foi instrumento de luta entre republicanos e monarquistas, jacobinos e liberais, civis e militares). O crime hediondo cometido contra os conselheiristas não passava para eles de episódio da luta oligárquica.
Canudos - Cartas para o Barão
Consuelo Novais Sampaio (org.)
Edusp (Tel.0/xx/11/818-4149)
262 págs., R$ 27,00
José Murilo de Carvalho é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
https://www1.folha.uol.com.br/
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
Acabam de ser publicadas 70 cartas referentes à guerra de Canudos enviadas ao barão de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins. O livro foi organizado por Consuelo Novais Sampaio, especialista na política baiana da Primeira República, que contribui também com substancioso ensaio introdutório. Foi incluída uma útil nota biográfica sobre o barão, redigida por seu trineto, Álvaro Dantas de Carvalho Jr.. O livro traz ainda cuidadosas notas explicativas e curtas biografias dos missivistas, organizadas por Álvaro Dantas de Carvalho, bisneto e organizador do arquivo do barão.
A publicação seria impecável se tivesse incluído um mapa da região de Canudos, com a localização das propriedades do barão e dos lugares de onde as cartas foram enviadas. O leitor não familiarizado com o tema ou com a região teria sido muito beneficiado por essa simples adição. Como não consta a correspondência ativa do barão, à exceção de uma carta ao filho, teria sido também útil se tivessem sido adicionados seus dois artigos no "Jornal de Notícias" de Salvador, datados de 4 e 5 de março de 1897, muito utilizados, aliás, por Consuelo Novais em sua introdução. A lamentar apenas a não inclusão, por não terem sido entregues pela família, de mais de 40 cartas enviadas ao barão por seu aliado político, José Gonçalves da Silva, primeiro governador constitucional da Bahia.
O barão de Jeremoabo era o maior latifundiário da Bahia, dono de 61 fazendas que cobriam vários municípios entre os rios Itapicuru e São Francisco. Nessa região situava-se Canudos, a Belo Monte do Conselheiro. Duas das fazendas localizavam-se no vizinho estado do Sergipe. Era também um dos donos do engenho central de Bom Jardim, em Santo Amaro, no fundo do Recôncavo.
A família Dantas dominara a política baiana ao final do Império, dividindo seus membros entre o Partido Liberal, cujo chefe era o conselheiro Dantas, primo do barão, e o Partido Conservador, de que o barão era um dos chefes. Bacharel em direito, homem culto, Cícero Dantas guardava as cartas que recebia, anotando data de recepção e de resposta. As cartas agora publicadas foram escritas por parentes, compadres, amigos, aliados políticos. Quase todos proprietários rurais, oficiais da Guarda Nacional, políticos, juízes. Gente de sua classe social. A única exceção é a carta de um vaqueiro.
Sinceridade dos missivistas
Na ausência da correspondência ativa do barão, poderia ser levantada a dúvida sobre a sinceridade dos que lhe escreviam. Estavam eles dando sua própria opinião ou dizendo o que o chefe queria ouvir? A homogeneidade social do grupo e a intimidade de muitos missivistas, primos, compadres e amigos, são um bom argumento a favor de sua sinceridade e da validade das cartas como representação da visão da classe dos proprietários sobre o Conselheiro e sua gente. Não há nas cartas jogo de cena, não há cálculo político, não há construção.
Aí está, de fato, a originalidade e a extraordinária riqueza do material agora posto ao alcance de pesquisadores e do grande público. A mesma segurança quanto à natureza da correspondência talvez não seja autorizada quando se trata de examinar a visão do grupo sobre a política baiana. A correta determinação dessa visão fica prejudicada pela ausência das cartas de José Gonçalves da Silva.
Pode-se dizer que as cartas não trazem grandes novidades na temática conselheirista tal como aparece nas discussões da historiografia recente. Essa historiografia, "deseuclidianizada", foi inaugurada por José Calazans, a quem Consuelo Novais justamente homenageia na introdução. Elas confirmam, por exemplo, a importância da competição oligárquica local e da política nacional. O combate ao Conselheiro era indissociável da briga do barão e do partido "gonçalvista" contra o "vianista", controlado pelo governador do Estado, Luís Viana, que tinha um aliado na vice-Presidência da República.
Elas oferecem farta evidência sobre a preocupação dos fazendeiros, e até mesmo dos intendentes municipais, com a fuga da mão-de-obra. Elas são também vivo testemunho do medo que se apoderou dos fazendeiros e autoridades à medida que os êxitos militares revelavam as dimensões reais do movimento.
Confirmam a violência da luta e a degola de prisioneiros. José Américo, coronel da Guarda Nacional, anticonselheirista histérico, fala em mais de 200 degolados em dois ou três dias após a queda do arraial. E ainda reclama de terem escapado mulheres e crianças: "Devia era tudo ser degolado".
Para efeito desses comentários, seleciono alguns pontos que, a meu ver, trazem maior novidade ou ajudam a esclarecer questões ainda polêmicas. Começo pela quase ausência na correspondência da questão da monarquia e da república. Em relação ao Conselheiro, os correspondentes usam todos os xingamentos, fanático, bandido, pobre-diabo, piolhento, monstro, Antônio da Malvadeza, menos o de monarquista.
A questão aparece em cartas enviadas do Rio de Janeiro. Em uma delas há a informação de que o jornal "O Jacobino" acusara o próprio barão de monarquista encapotado. Sabia-se que o Conselheiro falava contra a República e não gostava de republicanos, mas o complô monarquista foi invenção do Rio de Janeiro, com o quê os fazendeiros locais não se preocupavam muito.
O povo de 13 de maio
Por outro lado, um ponto ocultado por Euclides aparece com clareza. Refiro-me à presença de muitos negros e ex-escravos entre os conselheiristas. O escrivão Antero de Cirqueira Galo refere-se em março de 1897 ao "povo de 13 de maio, que é a maior parte" dos seguidores do Conselheiro. No mesmo mês e ano, o comerciante Manuel F. Menezes diz estar aguardando o ataque dos "carijés", isto é, dos ex-escravos. Três anos antes, em 1894, o coronel José Américo já falava do povo miserável de Canudos, "tudo que foi escravo, tudo que é criminoso".
Euclides não viu negros entre os prisioneiros entregues pelo Beatinho no dia 2 de outubro: "Raro um branco ou um negro puro (...), a fusão perfeita das três raças". A forte presença de negros atrapalharia suas idéias sobre os sertanejos como fusão étnica, a rocha viva de nossa raça. Assim como já tinha lido de maneira torta a teoria da luta de raças de Glumpowicz, como demonstrou Luiz Costa Lima, Euclides também enxergou mal a cor dos conselheiristas em benefício de suas teorias raciais.
Um dos pontos importantes da correspondência é a rica evidência sobre o êxodo para Canudos. Na primeira carta da coleção, datada de janeiro de 1894, o intendente de Tucano queixa-se da saída de umas 16 ou 20 famílias, e comenta: "É um horror!". Em fevereiro, o coronel Aristides, de Vitória, fala em despovoamento devido ao êxodo para Canudos. Em dezembro desse ano, o juiz de direito de Itapicuru informa que "continua em grosso o êxodo para os Canudos". Em janeiro de 1895, o mesmo intendente de Tucano diz não haver mais trabalhadores, e o de Monte Santo confirma que é constante a concorrência do povo para o arraial.
Nosso já conhecido coronel José Américo, primo e compadre do barão, escrevendo provavelmente do Rosário, em janeiro de 1896, comenta que o Conselheiro "ontem subiu com um povo imenso (...). Pessoas que nunca julguei acompanhá-lo seguiram com ele". O próprio barão, na única carta incluída no livro, escrevendo do engenho de Camuciatá (Itapicuru), diz ao filho em janeiro de 1897: "Depois do combate do Uauá o homem tem recebido reforço grande de toda a parte".
A partir da derrota de Moreira César (março de 1897), no entanto, a situação muda. Correm por todos os lados boatos de ataque dos conselheiristas. Muitas pessoas agora fogem de medo dos jagunços. As cidades e vilas se esvaziam. Após um tal boato, há terror em Tucano, todos fogem: "Esta vila está completamente deserta", informa o escrivão. Ao medo dos conselheiristas vem agregar-se o das tropas do governo, que cometem tropelias e roubos. "No Monte Santo", diz o tenente-coronel Marcelino, "consta que o arraso que há foi da tropa corrida".
O medo, feito pânico após a derrota de Moreira César, tem forte presença nas cartas. Em março de 1894, um compadre manifesta o primeiro receio de perturbações da ordem. No mesmo mês, José Américo calcula em 16 mil os seguidores do Conselheiro. Em janeiro de 1895, o intendente de Monte Santo prevê desenlace perniciosíssimo para o movimento.
Em janeiro de 1896, um juiz de direito fala dos horrores cometidos no Bom Conselho pela gente do Conselheiro. Ainda nesse mês, o vigário de Bom Conselho se confessa incapaz de fazer oposição ao Conselheiro por receio de ser desprestigiado pela população. O próprio barão revela ao filho, em janeiro de 1897, que vive assustado. Em março, o juiz de direito diz que o sobressalto é geral e que todos se preparam para fugir. A partir de julho de 1897, o cerco de Canudos traz alguma tranquilidade, mas surge o receio de violências por parte daqueles que de lá fugiam.
Trata-se de um medo construído, como argumenta Consuelo Novais? Não me parece. As cartas são comunicação pessoal, às vezes íntima, entre parentes e membros da mesma classe social. Não visam o grande público, a imprensa, ou mesmo a população local. Refletem um sentimento que parece autêntico entre proprietários de terra. Além disso, a reunião de milhares de pobres, muitos deles ex-escravos, muitos deles tirados das fazendas, em claro desafio à lei, à Igreja, às autoridades, movidos por uma fé imbatível no Conselheiro, era seguramente ameaça real, tornada mais grave quando os conselheiristas se mostraram capazes de enfrentar com êxito as tropas federais. Eram ameaça à ordem política e sobretudo à ordem social em que se sustentavam os proprietários.
A ânsia do mando
O que intriga o leitor e o analista do mundo do coronelismo é a força da ânsia do mando como fonte do conflito político. Não se sabe quem era mais odiado pela gente do barão, os conselheiristas, que lhes ameaçavam o poder social, ou os "vianistas", que lhes disputavam o poder político. Luís Viana e seu preposto, Rodrigues Lima, são constantemente acusados de manipular o conflito de Canudos para prejudicar o partido do barão, seja quando agem, seja quando deixam de agir. O coletor de Tucano, demitido, escreve em julho de 1897, em plena campanha da 4ª expedição: "Querem a todo transe destruir os amigos de V. Exa. (...), com a maldita questão conselheirista querem formar partido, (...) querendo ser os mandões de todos os tempos".
Em 1895, a luta produzira duplicata de governo no Estado, um chefiado pelo barão de Jeremoabo, outro pelo barão de Camaçari. Os conselheiristas eram ameaça às duas facções, que não se distinguiam pela origem social e os interesses. Mas elas eram incapazes de se unir na luta contra a ameaça comum a seu domínio social.
A repressão acabou vindo da capital da República (onde também foi instrumento de luta entre republicanos e monarquistas, jacobinos e liberais, civis e militares). O crime hediondo cometido contra os conselheiristas não passava para eles de episódio da luta oligárquica.
Canudos - Cartas para o Barão
Consuelo Novais Sampaio (org.)
Edusp (Tel.0/xx/11/818-4149)
262 págs., R$ 27,00
José Murilo de Carvalho é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
https://www1.folha.uol.com.br/