Em minhas andanças pelo Brasil algo que me trouxe uma profunda emoção foi olhar o enorme lago onde está sepultado o que restara da cidadela criada por Antonio Vicente Maciel e os seus seguidores que o chamavam de Conselheiro. Aquela imensidão de água, estancando a passagem do Rio São Francisco, era a vitória definitiva sobre o sonho louco de quem se pusera em confronto com gente muito poderosa. Mas, ali, perto daquelas águas que esconderam a “Velha Canudos” foi erguido um monumento, uma enorme estátua do Conselheiro que, lá de cima, olha sobranceiro, vitorioso sobre os seus vencedores.
Mas, surpresa maior eu tive na visita que, em Jeremoabo, à Fazenda Caritá, local de nascimento de Cícero Dantas Martins, que é mais conhecido como Barão de Jeremoabo, uma das ilustres personalidades da Bahia imperial e das primeiras décadas da República. O Barão de Jeremoabo foi proprietário de imensos territórios que herdou de seu pai, administrador das terras da Casa da Torre, e fez crescer graças às suas habilidades de comerciante e empresário inovador. Ele inaugura o período das usinas de açúcar, em uma de suas fazendas. Nos dias atuais seus descendentes continuam atuando e influenciando os destinos da Bahia e do Brasil.
Morto em 1903, o Barão tem notoriedade nos livros de História por sua participação na fase inicial da Guerra do Fim do Mundo, a Guerra de Canudos. Recente publicação das Cartas do Barão – homem de letras, estudos e comércio – se diz que Cícero Dantas Martins tentou convencer a Antonio Conselheiro desistir de seus projetos em organizar um povoado. O Barão teria auxiliado a idéia da organização da primeira tropa que acometeu os Conselheiristas. Claro que a atuação de um “desorganizador” da mão de obra na região criou instabilidade na Bahia dos latifúndios e na República dos Coronéis da “Guarda Nacional”, instituição que deveria ser extinta com a República, mas que se manteve no imaginário e cotidiano dos mais pobres. A surpresa que tive, entretanto é que nessa terra que nada guarda, nada conserva de sua história, também está deixando ser destruída o conjunto que forma a Fazenda Caritá: 3 casas de moradores, a Casa Grande e sua cozinha externa (com um dos primeiros serviços de água aquecida para o banho), o engenho de tração animal e a casa de banhos da família. Tudo isso está sendo reduzido a cinzas sob a proteção do INCRA e o silêncio do IPHAN. Esse conjunto nem mesmo está tombado pelo Patrimônio Histórico, ele está tombando.
É fácil entender que uma república de latifundiários não queira mostrar as ruínas das vidas arruinadas dos trabalhadores rurais, por isso Canudos está sob as águas de uma barragem, mas será que essa república se envergonha dos latifundiários do passado, e quer esconder no esquecimento os que destruíram Canudos para construir o Brasil de Hoje? Nós queremos nossa História. O INCRA não tem o direito de deixar virar cinzas um dos conjuntos arquitetônicos e residencial que explicam a nossa história. O IPHAN tem que ser acionado.
Ao longo do processo de formação do Brasil, a distância existente entre o cotidiano do homem comum e as instituições de comando sempre foi acentuada, sendo-as de repressoras ou controladoras do comportamento. Claro que as distâncias não impediam que os valores desejáveis pela convivência social terminassem por alcançar todos os estratos sociais, embora não da maneira que inicialmente esperada pelos grupos de dominância social. A aceitação do sofrimento, quase como marca das sociedades de tradições ibérias, é um desses valores assumidos pelos grupos “menos favorecidos”, como se dizia antigamente. Assim é que a veneração do Senhor Morto, morto após intenso sofrimento e abandono, que ocorre desde o final da Sexta Feira Santa, parece ter-se tornado uma marca da religiosidade popular no Brasil.
Em tempos de maior uniformidade religiosa, como nos tempos de domínio português, ou mesmo mais recentemente até à “romanização” promovida pelas reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II, as ruas das principais cidades eram tomadas por tais manifestações externas de fé. Ainda hoje as procissões podem ser encontradas em algumas cidades que mantém essa tradição, algumas antigas capitais. É verdade que se uma pesquisa for realizada podem vir a ser encontrados, ainda, sentimentos de manutenção da tradição, mas com pouco embasamento religioso ou teológico por parte de seus seguidores. Entretanto, ali também se perceberá que tais tradições estão relacionadas com a aceitação, quase fatal, do sofrimento.
A procissão do Senhor Morto sempre foi organizada por uma Irmandade ou Confraria leiga, entretanto nela sempre esteve presente o padre, as orações foram institucionalizadas. Vindas do povo, muitas devoções tornaram-se parte da tradição da instituição. É sempre assim. Mas às vezes, o que começa como uma iniciativa de alguma forma de poder acaba por ser assumido pelo povo, de tal maneira que já não se pode mais dele separar. Pois imagine se é possível por termo a instituições, a tradições pequenas que saem quase do nada, sem história documental para lhe dar veracidade? Claro que pode ser enfraquecida, mas não demolida em pouco tempo e, como sabemos, o tempo corre favorável às tradições.
Neste final de semana subi o Morro da Santa Cruz do Vaqueiro, no município de Jeremoabo. BA. Começamos a subida depois das oito horas da manhã da Sexta Feira Santa e já encontrávamos no retorno aqueles que subiram o morro durante a madrugada. É uma penitência feita em torno do morte de um vaqueiro que, seguindo uma rês durante a noite, caiu em precipício de mais de trezentos metros. Perderam-se no escuro da noite a rês, o cavalo e cavaleiro. Tradição antiga, quase centenária. No alto do morro foi posta uma cruz, construiu-se uma capela. Alguns anos atrás grupos de jovens encenavam a Paixão de Cristo, puseram um novo cruzeiro e padre celebrava missa.
O povo, sempre tem dificuldade em afastar o sagrado do profano e foi seduzido por algumas barracas de bebidas que não foram reprimidas no devido tempo. Depois, verificou-se que o espaço no alto do morro era pequeno para as devoções e as bebidas. O padre deixou de celebrar, os jovens católicos sem a liderança do padre deixaram de ir, o prefeito perdeu o interesse, o local ficou deteriorado. A falta de segurança levou à morte uma adolescente, o que fez temer pela vida de outros.
Mas o povo continua indo fazer penitência, pagar promessa, soltar fogos em plena Sexta Feira Santa. Parece ser um atentado à religião tradicional, mas é a vivência do sagrado e do profano, que agora convivem sem o padre e sem a bebida, mas com o povo e a sua fé.
O Morro da Santa Cruz do Vaqueiro é um belo lugar de observar o espetáculo de beleza formado pelos montes e vales do Jeremoabo, antes de penetrar na secura do Raso da Catarina.
Fonte: http://www.biuvicente.com/blog/?page-id=513&paged=11