Publicado em 7 de novembro de 2023 por Tribuna da Internet
Deltan Dallagnol
Gazeta do Povo
Um caso recente que viralizou nas redes sociais explica, de maneira clara, o descrédito atual da população com o Poder Judiciário. Ambos os casos retratam, de maneira fria e crua, como uma instituição que deveria entregar justiça aos cidadãos tem, em vez disso, aplicado a lógica do autoritarismo e do arbítrio que é característica dos donos do poder, ao esmagar e subjugar os fracos e os pequenos enquanto blinda, protege e premia com a impunidade os ricos, poderosos e criminosos.
O primeiro caso é o vídeo de uma mãe que, durante uma audiência de instrução sobre o assassinato de seu filho, recebe voz de prisão do juiz.
NO DEPOIMENTO – Tudo começou quando a promotora do caso perguntou à cabeleireira Sylvia Mirian Tolentino de Oliveira, a mãe da vítima, se ela estava confortável em prestar depoimento na frente do réu. O homem acusado de matar o filho de Sylvia estava a poucos metros dela e aquela era a primeira audiência 7 anos depois do crime.
A escalada do arbítrio judicial “em nome da democracia” corrói a fé na própria democracia e tende a produzir exatamente o que o STF afirma que pretende evitar: governantes autoritários.
Em resposta, a mãe da vítima demonstrou coragem e afirmou que não tinha problema. “Por mim ele pode ficar aí, pra mim ele não é ninguém”, responde Sylvia.
RESPEITO AO RÉU – Imediatamente, o advogado do réu começou a exigir que Sylvia tivesse “respeito” pelo réu. A promotora avisou o juiz: “Excelência, é uma vítima enlutada”. Mas o juiz, do alto de seu altar, deu razão ao advogado do réu e pediu a Sylvia respeito, que mantivesse a serenidade e tivesse inteligência emocional.
O juiz, autointitulado professor de inteligência emocional, mas não se sabe bem onde a (des)aprendeu, continuou a repreender a mãe, e a promotora protestou: “Não, não, Excelência, eu gostaria que a vítima pudesse se manifestar. A vítima e seus familiares têm direito à informação, ela tem direito a ser ouvida, ela tem direito a ser acolhida pela Justiça, é só isso. Deixa ela falar, eu só gostaria que ela falasse o que aconteceu”.
Seguiu-se uma confusão, com o juiz aparentemente repreendendo ainda mais a mãe com um tom exaltado de voz, em mais uma bela lição de sua suposta inteligência emocional, a mesma que exigiu da mãe enlutada (!), enquanto a promotora continuou a protestar.
JUSTIÇA DE DEUS – Sylvia então se levantou, jogou fora um plástico que segurava e disse ao réu: “Da Justiça dos homens você escapou, mas da Justiça de Deus não escapa”.
E foi nesse momento que o juiz deu voz de prisão à Sylvia. Isso mesmo, você leu corretamente. Deu voz de prisão. Para a vítima. Não para o réu, que seguia sem punição 7 anos depois do crime. Ao comentar o caso mais tarde, Sylvia explicou como se sentiu:
“Me senti muito humilhada e caluniada. Eu estava ali só pela justiça do meu filho. Você chega na frente de um juiz, de uma autoridade que é estudada para isso, para poder te defender, mas você é julgada por uma coisa que não fez. Você recebe voz de prisão”.
E A JUSTIÇA? – Segundo Sylvia, ela jamais imaginou que poderia sair presa da audiência de instrução do homicida de seu filho – pelo contrário, ela achava que, na frente do juiz, seria ouvida, acolhida e defendida.
Sylvia acreditava que o Poder Judiciário seria um local seguro para ela se expressar e onde poderia falar sem ser interrompida.
“Eu espero que a justiça seja feita, porque não teve justiça de lado nenhum. Eu espero também que o doutor juiz, que ele reconheça que ele errou. Ele errou comigo. Eu não deveria ser presa, isso me dói muito porque eu fiquei com muita vergonha. Eu fiquei com vergonha. Eu fiquei triste. Eu fiquei magoada. Porque era pra ele me defender. Eu estava ali na esperança de que ele me defendesse. E ele não me defendeu. Ele não me defendeu”, concluiu Sylvia, com a voz embargada e lágrimas escorrendo pvvelo rosto.
INACREDITÁVEL – A história já é demais revoltante, mas piora e beira o inacreditável. Ao invés de reconhecer o erro, o juiz disse que irá representar Sylvia por crime contra a honra.
Quer dizer, a mãe enlutada não deixou apenas de receber justiça pela morte do filho. Em cima da injustiça praticada contra sua família por um criminoso, ainda vieram uma segunda e uma terceira injustiças: a do Estado, pelas mãos do próprio juiz, primeiro com a prisão e depois com uma investigação e possível punição por crime contra a honra.
No Brasil, o mau exemplo sempre veio de cima: abusos, arbitrariedades, corrupção e ilegalidades. Se os ministros do STF podem, por que os demais juízes não?
(Artigo enviado por Mário Assis Causanilhas)