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domingo, setembro 26, 2021

Como a China está comprando o Brasil




Investimentos em setores estratégicos, lobby em Brasília, proselitismo em universidades: afora o discurso lunático da militância bolsonarista, como se dá e até onde vai a presença chinesa em território brasileiro. 

Por Duda Teixeira 

A China ganhou destaque no noticiário brasileiro dos últimos dias por distintas razões. Na segunda-feira, 20, o temor de que a incorporadora chinesa Evergrande desse um calote de 300 bilhões de dólares derrubou em mais de 3% as ações de empresas nacionais como Vale, Usiminas, Gerdau, Braskem e Petrobras — dias depois, um acordo com credores e mutuários chineses sobre os juros da dívida afastou temporariamente o risco, permitindo que as companhias brasileiras recuperassem parte do valor. Nos atos antidemocráticos do Sete de Setembro, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro compartilharam mensagens e gritaram palavras de ordem contra o país asiático — sem dizer exatamente por que motivo, eles acusavam o Supremo Tribunal Federal de atuar para transformar o Brasil em colônia chinesa. Na quinta-feira, 16, ainda na esteira da confusão, houve um improvável atentado a bomba, até agora ainda não esclarecido, na frente do Consulado da China no Rio de Janeiro. A Polícia Federal investiga. Nessa sucessão alucinante de eventos, com teorias conspiratórias de sobra, antes de firmar qualquer ponto de vista é preciso buscar uma compreensão mais próxima possível da realidade a partir de dados concretos: afinal, como se dá e até onde vai a presença chinesa no Brasil?

Nas últimas duas décadas, a relação entre a China e o Brasil mudou substancialmente e hoje se dá em planos superpostos, que afetam toda a sociedade. Alguns deles são imprescindíveis para a estabilidade e o progresso nacional, enquanto outros podem e devem despertar atenção, por questionar alguns de nossos princípios democráticos. No plano econômico, a influência chinesa é incontornável. No ano passado, a China foi o maior parceiro comercial do Brasil. As exportações, compostas principalmente de minério de ferro, soja, carne e celulose, renderam um superávit de 35 bilhões de dólares. A soma das exportações e importações ultrapassou 100 bilhões de dólares — o dobro do que foi comercializado com os Estados Unidos, por exemplo. Neste ano, as transações entre Brasil e China seguem em velocidade duas vezes maior do que a registrada com os americanos.

No quadro de investimentos estrangeiros no Brasil, os Estados Unidos também já não ocupam a liderança isolada. O ponto de inflexão ocorreu em 2010. “Nesse ano, por decisão interna, a China expandiu seus investimentos pelo mundo todo e ampliou sua relação com o Brasil, que passou a ir além da questão comercial”, diz Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Econômico Brasil-China, o CEBC, que reúne empresas privadas brasileiras. Nos sete anos seguintes, China e Estados Unidos passaram a se alternar na posição de maior investidor do país. Desde 2007, o valor acumulado de investimentos chineses no Brasil alcançou 66 bilhões de dólares, distribuídos em 176 empreendimentos. Quase metade dessa cifra foi para o setor de energia elétrica. Gigantes chineses como a State Grid e a China Three Gorges, a CTG, alavancaram a sua presença por aqui, assumindo contratos de concessão. As demais áreas em que os chineses mais investem são as de petróleo e gás, mineração e indústria de manufatura. Eles também têm despejado dinheiro em obras de infraestrutura.

A agricultura responde por apenas 5% dos investimentos, mas é um dos setores que mais despertam polêmica. A preocupação é com a compra de grandes porções de terras por chineses. Jair Bolsonaro já disse, por exemplo, que isso colocaria em risco a segurança alimentar do brasileiro. Ele até ameaçou vetar um projeto em tramitação no Congresso Nacional destinado a facilitar a aquisição de terras por estrangeiros. Dados do Instituto Nacional de Reforma Agrária, o Incra, apontam que os chineses estão em 14º lugar entre os estrangeiros que mais têm propriedades no Brasil. Não é algo significativo. O maior projeto de uma empresa chinesa nessa frente, até agora, foi da Chongqing Grain Group, que anunciou em 2010 o plano de construir uma fábrica de esmagamento de soja, um armazém de grãos e uma ferrovia no oeste da Bahia. A iniciativa não foi adiante por vários motivos. Dos 100 mil hectares que estavam sendo oferecidos aos chineses, 80% não prestavam para a agricultura. Além disso, naquele mesmo ano, a Advocacia Geral da União, a AGU, expediu um parecer que bloqueava as vendas de áreas para estrangeiros. “Desde então, a China passou a agir adquirindo companhias de sementes, de fertilizantes e empresas que negociam os grãos, as tradings”, diz o engenheiro agrônomo Anderson Galvão, diretor da Céleres, uma consultoria de agronegócio com sede em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. “Hoje, cerca de 80% da soja brasileira tem a China como destino. É um indício de que a estratégia está funcionando.”

Enquanto isso, assuntos que poderiam causar comoção têm passado despercebidos. O Brasil tem hoje dez unidades do Instituto Confúcio funcionando dentro de universidades públicas e privadas. Criado em 2004, o instituto se dedica principalmente a difundir o ensino do mandarim em 147 países. As escolas, contudo, têm sido criticadas por seu vínculo com as burocracias estatais do Partido Comunista, que recruta os professores e produz o material didático. Temas que podem desagradar à ditadura de Pequim, como a repressão ao movimento democrático em Hong Kong ou a invasão do Tibete, por exemplo, não entram na grade de conteúdo. Por sua ligação com o governo chinês, o Instituto Confúcio poderia até ser comparado a outras instituições de ensino, como a Aliança Francesa, o Instituto Cervantes, da Espanha, o British Council, o Instituto Italiano de Cultura ou o Instituto Goethe, alemão. A diferença, porém, é que o instituto chinês, com suas diretrizes obedientes ao regime, está incrustrado dentro das universidades, que deveriam prezar pela liberdade de pensamento.

Em 2019, a ONG de direitos humanos Human Rights Watch publicou um alerta pedindo que instituições de ensino superior resistissem aos “esforços do governo chinês de minar a liberdade acadêmica no exterior”. Após realizar mais de 100 entrevistas com estudantes do Instituto Confúcio na Austrália, Reino Unido, Canadá, França e Estados Unidos, a organização identificou casos de pessoas que tinham suas participações em sala de aula monitoradas remotamente. “As unidades do Instituto Confúcio são extensões do governo chinês que censuram certos assuntos e pontos de vista nos materiais didáticos com base na política, e usam práticas de recrutamento que levam em consideração a lealdade partidária”, dizia o alerta.

Diversas universidades americanas já fecharam filiais do Instituto Confúcio por violarem a liberdade acadêmica. Há um ano, o governo americano, então comandado por Donald Trump, definiu o instituto como missão estrangeira da China. “O Instituto Confúcio é financiado pelo governo da China e faz parte do aparato de propaganda do Partido Comunista Chinês”, afirmava o comunicado do Departamento de Estado. “Os Estados Unidos querem garantir que os alunos tenham acesso a opções culturais livres da manipulação do Partido Comunista Chinês.” Além dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Suécia encerraram as atividades de unidades do Instituto Confúcio.

No Brasil, as filiais da entidade seguem funcionando praticamente sem questionamentos. Em especial, dentro de universidades públicas. Na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, a ditadura chinesa arca com os salários dos professores, enquanto os demais funcionários e os custos ligados à estrutura são pagos pela instituição paulista. “A fundação chinesa faz uma pré-seleção das pessoas que querem ser professores no nosso Instituto Confúcio. Nós então recebemos as candidaturas e realizamos as entrevistas pela internet. Temos, portanto, alguma interferência no processo de recrutamento”, diz o professor Bruno Martarello de Conti, diretor do Instituto Confúcio da Unicamp. Caso os alunos façam alguma queixa em relação aos professores ou ao diretor chinês, a Unicamp pode pedir que sejam trocados, segundo ele. Em relação ao conteúdo acadêmico, Martarello afirma que a universidade pode sugerir temas de palestras. “O propósito precípuo do Instituto Confúcio é o ensino da língua, mas é claro que existe a possibilidade de o instituto ajudar nas atividades de colaboração acadêmica com a China. Então, algumas palestras e seminários podem ser apoiados por nós.”

Em outra frente, o Partido Comunista tem buscado conquistar um público mais amplo por meio da televisão. O Grupo Bandeirantes de Comunicação, responsável pelo canal Band, assinou em 2019 um acordo de cooperação com o China Media Group, que reúne 47 canais de televisão estatais. O contrato permite a realização de produções conjuntas e o compartilhamento de conteúdo. Na prática, o resultado foi que o brasileiro pôde ligar a tevê e assistir à chinesa Jing Jing Yang apresentando reportagens, com português carregado, em que os entrevistados tecem elogios à ditadura de Pequim. As chamadas das “reportagens” são o melhor resumo dos conteúdos compartilhados: “Ministra chilena elogia esforços da China” e “Colômbia avalia postura da China como positiva”. Um documentário sobre o Partido Comunista chinês afirma, por exemplo, que “somente quando o pensamento está unificado pode haver vontade, ação e progresso também unificados”. Na ditadura chinesa, como é sabido, não há espaço para o contraditório. De brinde, o telespectador desavisado ainda pode ganhar um pensamento filosófico citado pelo ditador Xi Jinping: “Todas as criaturas crescem e se desenvolvem cada qual em seus sistema e ordem, sem prejudicar o outro, e a natureza segue o seu curso de maneira paralela e sem conflitos”.

Na última terça-feira, 21, foi a vez da TV Cultura, vinculada ao governo de São Paulo, anunciar um acordo semelhante com a Xinhua, a agência oficial chinesa de notícias. “Esse acordo permite que a TV Cultura vá se informar na fonte primária, não na fonte alternativa ou secundária que são as agências ocidentais de informação sobre a China. Nós temos condições de, doravante, saber exatamente como pensam os chineses e o que dizem os chineses“, afirmou José Roberto Maluf, presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da Cultura. Tudo o que a Xinhua divulga em suas páginas, porém, reproduz as versões do Partido Comunista – não há a menor chance de a agência entrevistar muçulmanos uigures presos na província de Xinjiang, monges tibetanos perseguidos ou estudantes que pedem democracia em Hong Kong.

Outra vertente do avanço chinês no Brasil se dá entre os think tanks. Integrantes do Partido Comunista têm sido constantemente convidados para palestras virtuais organizadas por esses institutos, que deveriam se dedicar a produzir e a debater assuntos diversos, com o intuito de ajudar na elaboração das políticas públicas. Um dos nomes mais frequentes nessas apresentações é o do embaixador chinês Yang Wanming, desafeto de Jair Bolsonaro. O Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, o Iree, é talvez a entidade brasileira que mais tenha dado espaço para Wanming e outros representantes do partido. O presidente do Iree é Walfrido Warde, advogado que já defendeu a ex-presidente Dilma Rousseff e que tem Roberta Maria Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, como sócia.

Em seu site, o Iree cita como parceiro o Center for Internacional Security and Strategy, o CISS, da Universidade Tsinghua, em Pequim. Em seu primeiro anuário, publicado em 2019, a diretora do instituto, Fu Ying, descreve de maneira clara qual deve ser a utilidade de um think tan na visão de Pequim: “O CISS tem explorado o estabelecimento de think tanks em um esforço para alcançar a atual estratégia da China e as necessidades de desenvolvimento da nação”. “Os think tanks devem aderir à direção política de servir ao partido, ao país e ao povo, assim como propor políticas. Enquanto o resto do mundo tem pedido mais vozes da China nos últimos anos, informações enganosas e manipuladas ainda são encontradas por todos os lados. Então, os think tanks da China devem fazer mais e falar mais, e o CISS não poupará esforços para realizar essa causa”, prossegue.

De todos os planos desse intrincado jogo chinês, o da política tem um papel central. A Embaixada da China mantém proximidade com uma porção significativa do Congresso brasileiro. Uma das principais receitas que o governo chinês usa para difundir seus interesses junto a políticos é a realização de viagens para o país com todas as despesas pagas. Antes da pandemia, em setembro de 2019, os senadores Chico Rodrigues, do DEM, Esperidião Amin, do PP, Irajá Abreu, do PSD, e Rogério Carvalho, do PT, estiveram entre os convidados. A despeito do discurso sinofóbico das claques bolsonaristas, outro que participou do trem da alegria foi ninguém menos que Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da República, numa daquelas situações capazes de provocar tilt na cabeça dos militantes mais empolgados, mas que ao mesmo tempo revela o quanto a influência chinesa ultrapassa facilmente os limites da ideologia e das colorações partidárias.

Chico Rodrigues, aquele mesmo que no ano passado foi flagrado pela polícia tentando esconder dinheiro entre as nádegas, fez um pronunciamento no Senado logo após voltar de um tour por Pequim, Xangai e Hangzhou. “A China investiu quase 2 trilhões de dólares no mundo. A China investiu quase 2 trilhões de dólares no mundo! O Brasil recebeu pouco mais de 3% desses investimentos, o que mostra que há muito espaço para atrair investimentos chineses para a economia brasileira”, disse o senador. “A China é tida como um país comunista. Que país comunista é esse que tem um 1,4 bilhão de habitantes? (…) Eles são comerciantes milenares e, cada vez mais, nesse mundo competitivo, desenvolvem as suas atividades no comércio, mostrando a sua pujança e, obviamente, nos dando exemplos de como concorrer neste mundo competitivo”, emendou. Outro convidado, Irajá Abreu, filho da também senadora e ex-ministra Kátia Abreu, é o autor de um projeto de lei apresentado em 2019 que busca regulamentar a compra e o arrendamento de terras por empresas estrangeiras. A expectativa do senador é atrair 50 bilhões de reais por ano em novos investimentos.

Uma das principais batalhas políticas dos chineses no Brasil neste momento envolve o leilão de tecnologia 5G, que permitirá uma velocidade de tráfego de dados na internet 100 vezes maior que a oferecida pelas redes atuais. O leilão, inicialmente marcado para 2020, foi adiado várias vezes – em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, na terça-feira, 21, Bolsonaro afirmou que o certame deverá ocorrer “nos próximos dias”. A decisão deverá encerrar um duelo global. Os Estados Unidos têm pressionado o Brasil a banir a gigante chinesa Huawei do processo, sob o argumento de que a presença chinesa em uma área tão sensível põe em risco a privacidade dos usuários e até o sigilo das comunicações oficiais, podendo afetar, em última instância, a segurança nacional do Brasil – pelas leis da China, todos os cidadãos do país, e isso inclui evidentemente as empresas comandadas por eles, devem cooperar com os trabalhos de inteligência do governo. Não é, porém, uma questão simples. Há tempos, a Huawei fornece equipamentos para as grandes operadoras de telecomunicações brasileiras. Os aparelhos são mais baratos que os rivais europeus da Ericsson ou da Nokia, e permitiriam que as companhias os atualizassem para o uso no 5G sem ter que fazer grandes investimentos. Estima-se que esta possa ser a maior licitação da história do país, capaz de movimentar 45 bilhões de reais. Setores do agronegócio brasileiro apoiam a participação da China no leilão, com medo de futuras retaliações – o lobby já contou até com a ajuda do vice-presidente da República, Hamilton Mourão.

Além de políticos com mandato atualmente, os chineses também acionaram o ex-presidente Michel Temer. Em janeiro deste ano, veio a público a notícia de que a Huawei o contratou como conselheiro. Crusoé perguntou à empresa que cuida da assessoria de imprensa da gigante chinesa, a FSB, se Temer continua prestando o serviço. A resposta foi a seguinte: “A Huawei informa que o ex-presidente Michel Temer nunca atuou como conselheiro ou exerceu qualquer outro cargo na empresa”. Apesar da negativa, Temer sempre se orgulhou de seus laços com a Huawei e com os chineses. Em entrevista para a agência Xinhua no dia 26 de abril deste ano, ele falou de sua relação com a empresa. “Procurado pela Huawei, dei um parecer jurídico revelando as possibilidades de a empresa participar desta licitação (refere-se a leilão do 5G) sem nenhum impedimento. Parece-me que nessa altura não há mais problemas no governo brasileiro. Portanto, acho que ainda este ano será levada adiante a licitação“, disse. Crusoé perguntou, então, para a FSB se ela própria contratava Michel Temer. A resposta foi: “A FSB informa que contrata o escritório Temer Advogados Associados para assessoria jurídica”. Resumindo, a Huawei contrata a FSB, que contrata Michel Temer. Na ordem inversa: Temer trabalha para a FSB, que trabalha para a Huawei. Vale lembrar que, mesmo tendo deixado a cadeira presidencial há mais de dois anos e meio, Temer voltou a ter influência no Palácio do Planalto. Foi ele, afinal, o autor da declaração assinada por Jair Bolsonaro em que o presidente baixou o tom de suas declarações contra o Supremo Tribunal Federal no Sete de Setembro – mais um tilt na cabeça dos bolsonaristas. O Brasil está longe de se transformar em uma colônia chinesa, como apregoam os apoiadores mais exaltados do presidente, mas é verdade que Pequim – a seu modo, e sem economizar – tem feito de tudo para avançar por aqui.

Revista Crusoé

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