Por Ricardo Zamariola Júnior
O polêmico processo envolvendo o menor Sean Goldman revela como o problema da lentidão da Justiça brasileira transpõe os limites das nossas fronteiras, comprometendo a responsabilidade internacional do Brasil. Demoramos quase seis anos para cumprir uma obrigação que deveríamos ter honrado em seis semanas, de acordo com a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.
A Convenção de Haia é um tratado internacional ao qual já aderiram 81 nações, inclusive o Brasil. Segundo seus termos, quando uma criança é retirada do país onde vive sem obediência às leis ali existentes -conduta que o tratado qualifica de sequestro-, o país para onde ela tiver sido transferida haverá de determinar o seu retorno ao primeiro. A convenção ordena que esse retorno se dê em seis semanas, enfatizando a urgência como forma de garantir à criança a menor perturbação emocional possível.
Hoje, porém, nossa Justiça é incapaz de cumprir o prazo estabelecido pela convenção, e isso por força da própria ideologia que está à base do processo civil brasileiro.
O processo judicial trabalha com duas exigências contrapostas: celeridade e justiça. Uma decisão justa demanda reflexão, atividade que requer tempo. No entanto, a demora na solução da causa prolonga o estado de incerteza das partes e compromete a própria eficácia da decisão.
É do equilíbrio na proteção desses dois valores -celeridade e justiça- que resulta um processo apto a pacificar a sociedade. E é precisamente aí que a balança da nossa Justiça falha.
O Código de Processo Civil brasileiro vigente, editado em 1973, privilegia sobremaneira o valor justiça, permitindo exaustiva rediscussão de cada decisão e proibindo a entrega do direito ao vencedor antes do fim do processo. Quando em pauta a Convenção de Haia, essa busca obsessiva pela decisão mais justa redunda paradoxalmente em uma situação em que não se proporciona justiça a ninguém.
Não se trata de exagero. De um lado, a demora do processo prolonga a permanência da criança no Brasil, o que permite sua adaptação ao novo meio e faz com que o retorno ao país onde vivia lhe imponha um segundo trauma emocional. O caso Sean é o exemplo acabado dessa realidade.
De outro lado, contudo, determinar que a criança permaneça no Brasil por causa de sua adaptação revela uma injustiça até covarde para com o genitor que rapidamente dá início ao processo de retorno, passando então a aguardar uma resposta da Justiça brasileira -diga-se de passagem, é isso o que ocorre na maioria dos casos.
Além disso, numa perspectiva mais ampla, não retornar a criança ao fundamento da adaptação ainda traz outras consequências graves: (i) estimula o sequestro, porque o sequestrador saberá que a lentidão da Justiça trabalhará a seu favor, inobstante a ilicitude de sua conduta; (ii) convida os pais lesados a resgatar seus filhos no Brasil independentemente de ordem judicial, fazendo justiça com as próprias mãos; (iii) dá guarida a quem praticou ato ilícito, em detrimento de quem se serviu das vias legais para a proteção de seus direitos; e (iv) aplica um calote nos outros 80 países signatários da convenção, comprometendo a reciprocidade que deles se espera para retornar ao Brasil crianças retiradas irregularmente do nosso país. No centro desse cipoal de valores em choque, sempre uma criança...
O quadro mostra o óbvio: precisamos perder o medo de errar e acelerar o trâmite do processo civil brasileiro. Felizmente, recentes alterações legislativas já indicam um caminhar nesse sentido. Mas a mais louvável iniciativa coube ao Senado Federal -sim, havemos de elogiá-lo, quando fizer por merecer-, que, em outubro passado, instituiu uma comissão para elaboração de um projeto de novo Código de Processo Civil.
Formada por juristas do mais alto nível e presidida pelo ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, a comissão deverá apresentar um anteprojeto até maio de 2010. Casos de sequestro internacional de criança se repetem pelo mundo afora às dezenas todos os dias, inclusive no Brasil. Se não equilibrarmos a balança da Justiça brasileira, colocando maior peso no prato da celeridade, a Convenção de Haia se tornará letra morta por aqui.
Será mais um exemplo daquele fenômeno tupiniquim, que é talvez sem par, de lei que "não pega". Mas, desta feita, será um exemplo de proporções internacionais, a nos fazer corar no concerto das nações.
Que o caso do pequeno Sean sirva de alerta.
Artigo publicado originalmente nesta terça-feira, 9 de fevereiro de 2010, pela Folha de S.Paulo.
Ricardo Zamariola Júnior é advogado e defendeu o norte-americano David Goldman no caso Sean.
Revista Consultor Jurídico,
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