Roberto DaMatta
O Globo
Na véspera de minha primeira viagem aos Estados Unidos, em 1963, recebi de Dick Moneygrand — que iniciava suas pioneiras pesquisas no Brasil — um conselho inesquecível. “Na América” — recomendou — “faça sempre o contrário do que manda seu brasileiro coração. Coma a pizza com a mão; não se preocupe com desodorantes, mas pinte o cabelo; obedeça ao que estiver escrito, jamais encoste a mão no seu interlocutor e não olhe fixamente para uma mulher bonita. Seja compulsivamente pontual e, acima de tudo, note bem” — recomendou meu amigo com ênfase — “acalme-se quando sua reclamação for importante. Quanto mais difícil for seu problema, mais calmo você deve ficar. Lembre-se de que, nos Estados Unidos, não existe o vosso nervoso e recorrente ‘Você sabe com quem está falando?’.”
O narcisismo e a base teatral da arrogância de Donald Trump me fizeram supor que Joseph Biden seria derrotado. Afinal, dizia meu julgamento cultural brasileiro, ele é idoso, é muito controlado e enfrenta uma dura polarização.
TENEBROSAS POLARIZAÇÕES – Puxando, porém, pela memória, lembrei-me de como os americanos enfrentaram polarizações muito mais tenebrosas como, em 1861-1865, a Guerra Civil; na década de 50, o macarthismo fascista; em 1960, o movimento pelas liberdades civis, e outros eventos nefastos, com decisiva serenidade democrática.
Talvez a quietude seja de um traço cultural puritano que obriga a aprender com os erros, convoca calma diante da pressa, resistência diante da agressão e controle diante do nervosismo. Um otimismo e uma confiança que nossa ética da malandragem e do jeitinho trata como ingenuidade. Mas foi como eles reagiram a Pearl Harbor, ao assassinato de John Kennedy, ao terrorismo nas Torres Gêmeas e, agora, diante da presidência etnocêntrica e antiglobalista de Donald Trump.
PENSOU QUE ERA REI – Trump sabe agora que não foi eleito rei, mas presidente. Conforme os recém-eleitos enfatizaram nas suas falas inaugurais, eleitos recebem periodicamente mandatos. Tarefas legitimadas pelo voto.
Algo jamais discutido no Brasil, onde os eleitos literalmente não inauguram, mas “tomam posse” de cargos que garantem a impunidade e facilitam o enriquecimento. No Brasil, os eleitos pelos pobres ficam imensamente ricos. Além disso, esquecem seus compromissos e atuam pessoalmente. Tal como Bolsonaro, eles se comportam de modo absolutista, olvidando que mandato não é fidalguia.
Donald Trump foi derrotado pelo seu desprezo pelos valores democráticos — diferenças devem igualar e não construir muros — e, acima de tudo, pela preocupação com o planeta, e não apenas com seu poderosíssimo país.
IDEAIS PERDIDOS – Essa vitória da democracia americana renovou em mim a crença nos ideais perdidos. Os únicos, aliás, pelos quais vale a pena lutar. Foi como um escutar da inteligência. Sobre isso, diz Thomas Mann: “O intelecto humano é fraco comparado com a vida instintiva do homem. Mas há algo especial nessa fraqueza — a voz do intelecto é suave, mas ela não descansa antes de ter adquirido ouvidos. No fim, depois de inúmeras e repetidas rejeições, ela os encontra”.
Tive a tentação de chamar essa crônica de “Mister Biden goes to Washington” (O senhor Biden vai a Washington), porque a vitória de Biden & Harris tem sido valorizada pelo recalcitrante narcisismo de um Trump que rejeita o princípio da realidade e não aceita a derrota. A dramaticidade da vitória levou-me ao filme de Frank Capra, realizado em 1939. No filme “Mr. Smith goes to Washington”, conta-se como um ingênuo senador suplente chega à capital das tramoias e dos cínicos realistas para derrotar, com sua inocente integridade (toda integridade é inocente), um político corrupto e restabelecer valores adormecidos.
UM RAPAZ DE NITERÓI – Quando ouvi o emocionante discurso de Kamala Harris — imigrante-negra-caribenha-indiana educada naqueles Estados Unidos que reencarnavam a América —, veio-me a lembrança de um rapaz de Niterói que, graças à filantropia, foi estudar em Harvard e lá foi tratado como um igual.
Daí ao filme de Capra foi um passo, pois rememorei, no seu espírito e na sua obra, a marca democrática dos que torcem pela igualdade, como eu. Aquele momento foi, não tenho a menor dúvida, editado por Capra. Era a vida imitando, no campo sujo da política, a arte; ou era o ideal democrático, fundado em eleições, a afirmar que existem ideais?