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sábado, julho 30, 2022

O preço do amor de Lira




Arthur Lira tem um projeto político: conservar seu poder no Congresso e manter a chave do cofre do orçamento. Para tanto, ele se une a Bolsonaro ao mesmo tempo que se prepara para negociar com o PT. 

Por Wilson Lima 

No lançamento oficial de sua campanha à reeleição, no último domingo, Jair Bolsonaro reconheceu sua dívida com Arthur Lira (PP-AL), que estava no palco, vestindo uma camiseta azul com o nome do presidente-candidato e exibindo sua habitual cara amarrada.

“Temos hoje aqui a presença marcante do presidente da Câmara, o meu amigo de longa data Arthur Lira”, disse Bolsonaro. “Ele é o dono da pauta na Câmara dos Deputados! Nada é colocado em votação se não for por decisão dele. Eu sei que hoje a figura mais importante aqui sou eu. Mas se não é Arthur Lira, esse cabra da peste de Alagoas, não teríamos chegado a esse ponto. Obrigado Lira!”

A fala do presidente omite dados importantes, mas no geral é bastante correta. De fato, a história de Lira e Bolsonaro vem de longa data: os dois já foram colegas de partido e têm raízes bem fincadas no Centrão, essa terra escura que reveste o chão do Congresso.

Não há dúvida que Lira é um cabra da peste. Segundo seus colegas deputados, trata-se de um homem reservado, com frequência ríspido, com quem não é bom comprar briga, mas que costuma ser fiel às suas promessas. E não há dúvida também de que, com um Poder Legislativo que nunca teve tanto poder no governo federal, Lira é o maestro da banda.

Vez por outra ele é citado nas páginas policiais. Antes de seguir para Brasília, Lira exerceu mandatos de deputado estadual por 12 anos (de 1999 a 2011). A Operação Taturana, deflagrada em 2007 pela Polícia Federal, apurou desvios de dinheiro na Assembleia Legislativa alagoana e serviu de base para a condenação dele em dois processos. Uma dessas condenações foi confirmada em segunda instância, o que o tornaria inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Mas Lira obteve a suspensão da condenação no Tribunal de Justiça de Alagoas, em 2018. Citado na Lava Jato, o presidente da Câmara foi processado, mas o STF arquivou a ação por falta de provas. Ainda tramita um outro processo contra ele no tribunal, relacionado a um esquema em que Lira supostamente teria recebido propina de R$ 106 mil do então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos (CBTU). A ação, que hoje tem como relator o ministro André Mendonça, está parada desde 2020.

Como disse Bolsonaro, desde que assumiu a presidência da Câmara, no início de 2021, Lira tornou-se realmente o senhor da agenda legislativa. Essa sempre foi uma prerrogativa de quem ocupa o cargo, mas o alagoano concentra mais poder do que seus antecessores, por dois motivos. Primeiro, porque ele se deparou com um governo em que nem o presidente, nem seus principais auxiliares (como o ministro da Economia, Paulo Guedes), têm habilidade, disposição ou força para negociar apoio político para seus projetos. Em segundo lugar, porque o orçamento secreto e as emendas do relator lhe proporcionaram um modo extraordinário de arrebanhar maiorias em votações importantes.

Aqui, é preciso mencionar aquilo que o discurso de Bolsonaro pudicamente omitiu. Cabe ao presidente da Câmara, e a ninguém mais, dar início a um processo de impeachment. Lira ignorou todos os pedidos que chegaram à sua mesa – mais de 130, segundo a última contagem. Portanto, é uma verdade das mais verdadeiras que Bolsonaro não teria chegado aonde chegou sem a conivência do “dono da pauta”.

A grande imprecisão de Bolsonaro foi chamar Arthur Lira de amigo. Diz o adágio que em política não existem amigos, apenas conspiradores que se unem. Bolsonaro certamente sabe disso, uma vez que já deixou pelo caminho diversos colaboradores que se tornaram incômodos. Ele também deve saber que o presidente da Câmara não o livrou do impeachment por seus belos olhos, mas porque o controle da iniciativa política em Brasília e de uma fatia importante do orçamento lhe foi entregue docilmente. Se existe um eu lírico em Lira, ele não se derrama pelos outros, mas por suas próprias ambições. O fato de ter sido o maior beneficiário do orçamento secreto na Câmara ilustra esse ponto: ele conseguiu direcionar R$ 357 milhões para sua base eleitoral no ano passado, o que deve tornar tranquila sua reeleição daqui a pouco mais de dois meses.

Com as eleições se aproximando, é quase possível enxergar as contas de benefício e risco sendo processadas. Como o melhor dos mundos seria uma vitória de Bolsonaro, o que manteria tudo como está e facilitaria a reeleição do próprio Lira à presidência da Câmara, em fevereiro de 2023, ainda faz sentido para o deputado alagoano investir nessa hipótese. Daí a presença dele no palco bolsonarista, no último domingo. Mas sem perder a sua ternura característica, Lira, assim como Ciro Nogueira, ministro-chefe da Casa Civil, esconde Bolsonaro nos santinhos distribuídos entre eleitores do Nordeste.

A hipótese de vitória do atual presidente é cada vez mais remota. As pesquisas mostram há meses um cenário inalterado, em que Lula tem uma sólida vantagem sobre Bolsonaro. No Datafolha publicado nesta quinta-feira, 28, a diferença entre os dois é de 18 pontos percentuais: o petista aparece com 47% e o presidente com 29%, o que liquidaria a fatura no primeiro turno das 

Em 18 de julho, enquanto Bolsonaro reunia cerca de 40 embaixadores estrangeiros para levar ao mundo suas teorias conspiratórias sobre o sistema eleitoral brasileiro, Lira visitava um centro de equoterapia a 1,7 mil quilômetros do Palácio da Alvorada, em Penedo, município do Sul de Alagoas, com aproximadamente 64 mil habitantes.

Nos dias seguintes, apesar das cobranças para que o presidente da Câmara se pronunciasse a respeito daquele episódio incomum, Lira ficou em silêncio e manteve inalterada sua agenda de visitas e articulações pré-eleitorais: participou de uma missa em Boca da Mata em homenagem ao Padre Cícero; de uma reunião partidária em Canapi; da visita a obras de infraestrutura em São Miguel dos Campos; de uma caravana partidária em Rio Largo; e assim por diante.

A insistência para que se pronunciasse veio de todos os lados. A emissários de Bolsonaro, ele disse que reconhece mérito nas críticas às urnas e especialmente a integrantes do STF e do TSE que extrapolam em suas funções. Apesar disso, por sua posição institucional, não caberia a ele pôr mais lenha na fogueira. Depois de dar uma no cravo bolsonarista, Lira deu outra na ferradura oposicionista: pediu que aliados levassem mensagem à imprensa a mensagem de que já defendera o sistema eleitoral em outras ocasiões e que, para ele, o sepultamento da PEC do voto impresso, em agosto do ano passado, era a resposta que o Poder Legislativo deveria dar sobre o assunto.

Finalmente, nesta quarta-feira, 27, Lira viu-se numa situação em que foi impossível fugir ao assunto. Na convenção nacional de seu partido – e com Bolsonaro ao seu lado -, ele fez um pronunciamento mal-humorado. “Eu dei mais de 20 declarações mundo afora e internamente que sempre fui a favor da democracia, de eleições transparentes, e que confio no sistema eleitoral”, disse ele. Falar em eleições transparentes agrada ao bolsonarismo. Confiança no sistema eleitoral agrada a todos os demais. Repetindo, este é o lirismo de Lira: o da poesia para lá de concreta.

Lira sabe que uma vitória de Lula lhe impõe desafios. Nesta semana, em aceno direto a Lira, o candidato petista afirmou que o chefe do Executivo não deve interferir nas disputas pelo comando do Legislativo. Mas ele também já deixou claro várias vezes que não pretende se conformar com uma situação em que o controle absoluto das votações esteja nas mãos do chefe da Câmara.

Embora a tendência do Centrão seja sempre compor com quem ocupa o poder, uma rendição incondicional certamente não está nos planos de Lira. Ele tentará vender o mais caro que puder a promessa de convivência pacífica com um governo petista. Para isso, precisa tentar garantir que PP, PL e Republicanos (partidos que hoje apoiam a reeleição de Bolsonaro) tenham um grande número de candidatos na próxima legislatura.

“Muita coisa nos próximos anos vai depender da correlação de forças na Câmara depois das eleições de outubro”, diz um dos vice-presidentes do PP, o deputado federal Cláudio Cajado (BA) “O grupo que hoje é oposição tem de 120 a 130 membros. Vai diminuir ou aumentar em 2023? O mesmo vale para o grupo de partidos que hoje apoia Bolsonaro. Essa matemática, além do cacife com que o próximo presidente vai chegar ao Palácio do Planalto, que é diferente em caso de vitória no primeiro ou no segundo turno, vai dizer como serão as relações futuras entre o Executivo e o Legislativo.”

O PP de Arthur Lira tem hoje 57 deputados e espera crescer um pouco, chegando a 60. O PL de Valdemar Costa Neto, que tem 77 parlamentares na Câmara, acredita que pode eleger até 90 congressistas em outubro. Republicanos, hoje com 43, acredita que pode fazer até 50 parlamentares. Se as projeções estiverem certas, serão 200 votos na Câmara. Isso pode ampliar a base controlada atualmente por Lira, que oscila entre 260 e 270 parlamentares, considerados os votos de partidos menores como o PTB de Roberto Jefferson. Mas, como o Centrão é lugar de gente muito fiel, Lula, uma vez eleito, poderá atrairá boa parte dessa gente e dispensar intermediários.

Nos últimos dias, Lira iniciou uma aproximação com Gilberto Kassab, presidente do PSD, que também deseja ver seu correligionário Rodrigo Pacheco (MG) mantido na presidência do Senado. Em resumo, é muito improvável que ele não esteja à frente de um grupo parlamentar grande o suficiente para, pelo menos, vender mais caro o amor a um presidente menos amigo do Centrão. Projetos de emenda à Constituição, por exemplo, requerem 308 votos para ser aprovados.

Os coordenadores políticos da campanha de Lula observam esses movimentos e também fazem seus lances. Eles dizem que poderão contar com até 350 parlamentares, considerando não apenas os deputados que vierem a ser eleitos pelos partidos que funcionam como linha auxiliar do PT (PSB, PV, Psol, Rede e PCdoB), mas também nomes do MDB, do PSD, do PDT e até mesmo do PSDB e da União Brasil. A soma desses 350 deputados com os duzentos e tantos que o grupo de Lira espera eleger dá muito mais que as 513 cadeiras da Câmara. Alguém, ou todo mundo, está exagerando no otimismo. O único fato certo é que, depois de outubro, se o PT vencer, começarão as barganhas — e Lira estará lá, fazendo o preço do seu amor.

Lira já procura construir uma interlocução com o PT, a partir de Minas, por meio do deputado federal Odair Cunha, e com uma ala do PSB, por meio do deputado federal Felipe Carreiras (PE), relator do projeto de lei que legaliza os cassinos no Brasil. Mas ele não pretende ficar na dependência apenas da lábia. Em jogo combinado com o Planalto, pretende liberar o pagamento de pelo menos um terço das emendas de relator somente no final do ano, entre novembro e dezembro. Dessa forma, seria possível costurar acordos com deputados reeleitos, com vistas à campanha para a presidência da Câmara, no começo de 2023. E tudo sob uma justificativa absolutamente republicana: “Nunca o parlamento teve tanta força quanto na gestão Lira”. E vem muito mais força por aí. Segundo dados da Câmara, dos R$ 21 bilhões disponibilizados aos parlamentares, apenas R$ 6,7 bilhões foram liberados até agora.

“A preocupação número um de Lira certamente não é se Bolsonaro vai ganhar as eleições ou não. A questão é como manter o próprio poder”, disse a Crusoé um aliado do alagoano. O grande projeto político do presidente da Câmara é, portanto, ele próprio.

Ex-vice presidente da Câmara e hoje desafeto de Lira, o deputado Marcelo Ramos (PSD-AM) põe as coisas em termos mais ácidos: “Lira não se converteu ao bolsonarismo. Ele estará com qualquer governo que se submeta aos seus caprichos e interesses. O mesmo amor que ele tem por Bolsonaro ele teve pela Dilma e pelo Temer. A diferença é que agora ele exige ficar com a chave do cofre do orçamento no próprio bolso”. Não é lindo o amor? Não é caro o amor?

Revista Crusoé

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