Salomão pede um coração inteligente ao Eterno, mas o que está em jogo é filosofia e poesia, não fisiologia.
Por Luiz Felipe Pondé (foto)
O rei Salomão foi filho do rei Davi –o bem-amado de Deus na tradição hebraica– e da sua amada Batsheva, que antes de ser sua esposa, foi sua amante, e esposa adúltera de um dos seus generais. O Deus de Israel tem um coração peculiar na escolha dos seus heróis e heroínas. Essa é uma das belezas desse grande personagem do hebraísmo antigo, que muitas vezes escapa a leitores mais afobados.
Conhecido pela sua sabedoria, Salomão pede ao Eterno, num dado momento, que lhe dê um coração inteligente. O que seria um coração inteligente?
Muitos comentadores dizem que para os hebreus o órgão do pensamento seria o coração. Sabemos pouco sobre o quanto os hebreus entendiam de fisiologia humana —provavelmente quase nada. Mas, o que está em jogo aqui não é fisiologia, mas filosofia, teologia e poesia.
O conjunto de textos que a tradição remete a Salomão a autoria são os textos que compõem a chamada sabedoria israelita antiga. Trata-se de textos que concentrariam a ação do coração inteligente dado pelo Eterno a Salomão, para além, claro, da sua ação sábia como governante.
Textos como "Eclesiastes", que fala da vaidade —nuvem de nadas— de tudo que existe debaixo do Sol. "Provérbios", que nos ensinaria a sabedoria dos patriarcas —hoje os sábios têm 15 anos. "Cântico do Cânticos" —texto mais sagrado da tradição hebraica—, que falaria do amor profundo entre Israel e Deus, ou a alma humana e Deus. Ou mesmo o "Livro de Jó", que nos falaria do erro que é pensar que exista alguém capaz de dizer o que é o bem e o mal além de Deus.
O filósofo francês, e judeu, Alain Finkielkraut, escreveu em 2009 um belo livro em que ele se refere a esse pedido de Salomão feito ao Eterno como ponto de partida para sua reflexão literária, desenvolvida no livro "Um Coração Inteligente" –com tradução no Brasil.
Na obra, Finkielkraut deixa claro que na falta de Deus como parceiro em seu pensamento, por não ser ele religioso, o filósofo escolhera alguns clássicos e refletira sobre eles a fim de buscar esse coração inteligente no diálogo com a literatura.
O resultado desse diálogo, segundo o filósofo, seria a possibilidade de apreender o mundo na sua profundidade misteriosa, depois de um século terrível como o 20, e de uma inteligência miseravelmente funcionalista –nas palavras do autor– como protagonista do pensamento no mundo contemporâneo.
Endosso as palavras de Finkielkraut. Assim como ele —que tive a sorte de entrevistar nos anos 1990 para o jornal O Estado de S. Paulo—, também, às vezes, me encontro sob a sombra de uma certa nostalgia diante de um mundo pragmaticamente estúpido.
Para além da riqueza que é a boa literatura, entendo que na forma original de Salomão, o contato com Deus –ou com a sua tradição escrita– pode ser um encontro com um coração inteligente. A definição do filósofo de um coração inteligente como um coração que apreende e pensa o mundo na sua profundidade misteriosa me parece bastante consistente.
Entendo que o diálogo com Deus nos faz mais inteligentes. Esse diálogo, penso, vai além do livro revelado em si e toca toda a trama de textos escritos pela tradição abrâamica– judaísmo, cristianismo e islamismo.
Ao contrário do que muitos pensam, o esforço para apreender o que seria esse personagem nos ensina que um coração inteligente é um coração que precisa ter uma capacidade respiratória ampla. Assim como quando entramos num tempo religioso e tentamos capturar o ar que ali se respira —principalmente quando vazio. Deus exige fôlego.
Um dos traços mais interessantes do Deus de Abrãao é sua capacidade de perseguir pessoas que não, forçosamente, creem nele. Ou que estejam em busca da sua presença.
Autores judeus, cristãos e muçulmanos narram encontros entre pessoas que tem suas vidas invadidas por esse Deus, invasão essa que transforma sua cognição, sua análise moral, sua percepção do que é o conhecimento, assim como da ciência, enfim, os torna mais inteligentes no que se refere a profundidade misteriosa do mundo. Assim como o pessimismo, a estupidez é um pecado diante de Deus.
Folha de São Paulo