Publicado em 24 de fevereiro de 2023 por Tribuna da Internet
Carlos Andreazza
O Globo
A manchete de um grande jornal informou: “Governo Lula abre mão de verba para Lira distribuir emendas até a deputados de oposição”. Poderia ter simplificado: “Orçamento secreto continua”. Talvez pusesse uma pimenta: “Novo governo mantém prática do antigo”. Quem sabe dando nome aos bois: “Governo Lula dá sequência a esquema de Bolsonaro”. (E, então, o jornal seria cancelado. Como ousou equivaler o garantidor da democracia ao capiroto?)
Nada mudou, afinal. (Calma. Nada mudou em matéria de orçamento secreto.) Sufocada a rubrica RP9, que classifica a emenda do relator, a gestão autoritária do orçamento da União driblou o Supremo e migrou à RP2, mantida a falsa administração dos recursos pelos ministérios.
NOVAS FACHADAS – O orçamento era secreto porque movido por detrás de fachadas. As fachadas se deslocaram — para que o trânsito orçamentário permaneça na mão obscura de poucos senhores.
Lembro que a Lei Orçamentária Anual de 2023 veda o cancelamento — sem o aval do relator-geral — de dotações de despesas discricionárias que decorram de indicações do… relator-geral. Ficou tudo amarrado, conforme distribuição dos bilhões definida — sob indicação do relator — quando ainda vigorava o uso pervertido das emendas… do relator.
Não é, portanto, que Lula tenha aberto mão de verba para Arthur Lira distribuir até a deputados de oposição. O governo simplesmente não tem o que fazer. Longe, porém, de ser vítima.
ACERTO NA TRANSIÇÃO – A forma como os dinheiros do orçamento secreto — como os usos desses dinheiros — foram remanejados-recompostos derivou de acordo que desamarrou a aprovação da PEC da Transição. Lira e sócios mandam o Planalto pagar — e o Planalto paga. Daí por que contemplados também — como na época das emendas do relator — parlamentares de oposição.
Não por gentileza de Lula. Mas porque Lira e o consórcio que lidera querem, em nome de interesses corporativistas. Ao governo cabendo controlar, em troca de votos nas matérias de seu interesse, o tempo das liberações. Ficam todos felizes, todos comprometidos entre si.
Nada mudou. É preciso avaliar a natureza dessa continuação de práticas. É preciso também avaliar o uso do discurso de “não criminalização da política” como fachada para que avanços patrimonialistas sobre a superfície do Estado se perpetuem.
JOGO VICIOSO – Governos democráticos oferecem espaços na administração para que aliados participem da gestão. É do jogo. No entanto que jogo fazem governos democráticos que oferecem espaços na administração para que aliados pretendidos continuem gerindo viciosamente as mesmas superfícies corrompidas durante o período que o discurso democrático afirma querer superar?
O problema não está em dividir cargos — em partilhar o poder. Está em sustentar o esquema de poder lesivo que vigorou no governo Bolsonaro. O que significará Juscelino Filho ser ministro de Lula, senão o reconhecimento — o elogio — à capacidade de o orçamento secreto eleger novos poderosos?
Nada mudou. Veja-se o caso da Codevasf. É propriedade, desde o governo Bolsonaro, do deputado Elmar Nascimento. E assim permanecerá; a Elmar cabendo decidir se manterá o atual presidente da companhia, cujo alargamento fez com que os vales do São Francisco e do Parnaíba chegassem até o Amapá do rio Alcolumbre, esse grande afluente.
ORÇAMENTO SECRETO – A Codevasf de Elmar, que é Lira, foi — sob Bolsonaro — a arena preferencial para o espetáculo do orçamento secreto. Assim seguirá. Seguirão as irregularidades? Seguirão as irregularidades identificadas no governo Bolsonaro, mantida a mesma cadeia de comando na empresa? Poderá ser diferente?
Apurações da Controladoria-Geral da União documentaram a transformação da companhia em fábrica de pavimentação Brasil adentro, com asfalto que esfarela como farinha. Mesmo no Amapá. É um complexo perfeito de interesses alcolúmbricos.
A Codevasf, musa do orçamento secreto, fica com Elmar, que é Lira, em troca do apoio do União Brasil, que apoia ninguém — e quer mais sudenes. Que tal? Não haverá miragem maior que esperar o apoio de um partido que não existe, mas tem votos. Uma máquina de barganha — ou chantagem.
PARTIDOS-PERSONAS – O União Brasil é uma federação de partidos-personas. Elmar é um. Davi Alcolumbre, um. Luciano Bivar, outro. Há outros. O governo entrega, entrega pavimentação, pensa se acercar do oásis, mas o deserto come o asfalto e pede mais e mais chão — mais areia. O governo entrega. O União, farinha, escapa entre os dedos, a cada votação demandando um novo Dnocs. Vale?
Não é somente investimento corruptivo, autoritário e caro. Mas corruptivo, autoritário, caro e inócuo. Areia — farinha — não faz base.
A grande questão, contudo, impõe-se mesmo à burrice da escolha contraproducente: se Bolsonaro, o sete-peles, entregou as codevasfs aos cuidados do consórcio Lira, em que página ficará o governo Lula ao manter os vales sob controle da República de Elmar?