Publicado em 26 de fevereiro de 2023 por Tribuna da Internet
Demétrio Magnoli
Folha
Joe Biden emergiu de surpresa em Kiev para libertar os EUA da sombra de Cabul. Sua mensagem, destinada ao público doméstico, aos aliados europeus e à Rússia: não abandonaremos a Ucrânia. Sem a humilhante retirada americana do Afeganistão, em 2021, dificilmente Putin teria deflagrado sua guerra imperial de conquista. Hoje, do Donbass à Crimeia, está em jogo o equilíbrio geopolítico mundial.
O proclamado “momento unipolar” da implosão da URSS e da primeira Guerra do Golfo (1990-91) ficou no passado – e, talvez, na esfera das ilusões. Na hora da retirada do Vietnã, meio século atrás, a economia dos EUA representava 36% do PIB global; hoje, representa cerca de 24%.
NOVA GEOMETRIA – O poder bruto chinês, a dimensão da economia da União Europeia e o arsenal nuclear russo configuraram uma geometria multipolar. Os EUA já não são o hegemon, mas o “primus inter pares”. A Ucrânia situa-se numa encruzilhada histórica: um teste decisivo da superpotência que arquitetou a ordem mundial.
“Vitória” é, nessa guerra, um conceito em mutação. Um ano atrás, do ponto de vista da Ucrânia, significava sobrevivência: frustrar a marcha das colunas russas a Kiev. A épica resistência ucraniana, pontilhada por triunfos no campo de batalha, uniu a nação e transformou seu objetivo militar. A guerra de agressão tornou-se uma guerra de independência. Hoje, a quase totalidade dos ucranianos (inclusive a maioria dos russófonos) define “vitória” como a retirada russa de todos os territórios invadidos, inclusive a Crimeia ocupada em 2014.
O compromisso dos EUA com a defesa da soberania da Ucrânia impede a Casa Branca de engajar-se em negociações diretas com o Kremlin, por cima do governo ucraniano. O máximo que Biden poderia impor a Kiev seria a admissão de um armistício baseado na retirada russa às linhas de cessar-fogo vigentes um ano atrás.
RESOLUÇÃO DA ONU – Vai nessa direção a resolução aprovada pela ONU por maioria esmagadora. O Brasil alinhou-se à resolução, afastando-se finalmente da hipócrita neutralidade mantida por Bolsonaro e ensaiada também por Lula. Mas a retirada é inaceitável para Moscou –e implicaria o desmoronamento do regime putinista.
Originalmente, Putin definiu “vitória” como a derrubada do governo ucraniano e a incorporação do país à “Grande Rússia”, na condição de protetorado. A meta maximalista dissolveu-se ao longo de meses de insucessos bélicos e o chefe do Kremlin a redefiniu como a anexação do leste e do sul ucranianos.
No cenário atual, a estratégia russa é concluir a ocupação dessas áreas e forçar um armistício baseado no mapa militar. O caminho para tanto é a ruptura da aliança internacional que sustenta a resistência ucraniana. Não é impossível.
OPOSIÇÃO NO EUA – Nos EUA, Trump e DeSantis lideram a ala republicana isolacionista disposta a abandonar a Ucrânia. Na Europa, os impactos econômicos e migratórios da guerra prolongada abrem trincas, ainda subterrâneas, nas elites políticas.
Daí a aposta de Putin num plano de “paz” que a China promete apresentar, talvez com apoio da Índia. A “paz” com anexações não passaria do hiato preparatório para uma terceira invasão.
A hipotética “vitória” russa assinalaria um declínio radical do papel global dos EUA, paralelamente à ascensão do isolacionismo republicano.
CONSEQUÊNCIAS – Na União Europeia, a suposta vitória russa produziria uma cisão entre o núcleo franco-alemão e as nações do antigo bloco soviético. Propiciaria, ainda, a projeção de poder da China e da Rússia.
O desfecho putinista anunciaria o colapso da ordem internacional alicerçada em regras e expressa na Carta da ONU. No seu lugar, surgiria algo como o “pan-nacionalismo” sonhado por Ernesto Araújo, o ex-chanceler de Bolsonaro: um sistema de esferas de influência gerenciadas pelas grandes potências e a proliferação de regimes autoritários baseados em identidades étnicas ou religiosas.
A guerra na Ucrânia não é um conflito regional.