Artigo pulicado na Tribuna da Bahia em 07/12/16
Colocando pontos nos is
A decisão da Câmara dos Deputados de aprovar, na calada de uma madrugada de dor no Brasil e no mundo, o Projeto de Lei de combate à corrupção, eivado de mudanças de última hora, foi duplamente infeliz. Em primeiro lugar, porque constituiu uma iniciativa de lamentável esperteza para abortar o desejo dos eleitores; em segundo, porque se frustrou o solerte desiderato, diante da pronta reação da sociedade brasileira, a ponto de levar o Senado a rejeitar a votação urgente da matéria, de um modo tão precipitado que inviabilizou o seu curso. O resultado líquido da manobra foi o rebaixamento do já baixo conceito do Congresso Nacional no julgamento popular.
Pelo seu excepcional relevo, a matéria carece de ser analisada de um modo equidistante das paixões que ora formam o pantanoso ambiente psicossocial que o povo brasileiro respira. Como nunca, aqui se aplica a sabedoria popular que ensina: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
Além da introdução de alterações de última hora no conjunto das dez medidas de combate à corrupção, de iniciativa popular, a Câmara pecou pelo caráter intimidante e retaliatório a membros do Judiciário e do Ministério Público, empenhados na apuração de crimes que sangraram e sangram o Brasil, submetendo-os à categoria dos crimes de responsabilidade, como os que sujeitam integrantes do Executivo e do Legislativo. A ocasião não poderia ser mais imprópria para a aprovação de uma medida tão necessária. O princípio democrático, ativo e passivo, da isonomia proscreve privilégios legais. Não há, portanto, razões para excluir membros do Judiciário ou do Ministério Público do alcance de limitações de arbítrio e de punições que alcançam os integrantes dos demais poderes. O assunto já é objeto de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 53/2011), aprovada pelo Senado Federal em 2013 e aguardando apreciação pela Câmara dos Deputados.
O Ministro Ayres Britto, que como Presidente do Supremo e do CNJ condenou um juiz e três desembargadores, por assédio sexual, improbidade, negligência e peculato, adverte que o Artigo 93 da CF confere caráter privativo ao Supremo para encaminhar ao Congresso um Projeto de Lei para regulamentar o Estatuto da Magistratura. A inobservância da norma constitucional pode fulminar de inconstitucionalidade a importante iniciativa, conforme Ayres Britto que diz: "O que for do regime jurídico central do magistrado é de figurar, nos termos da Constituição, numa lei de iniciativa privativa do próprio Supremo. Eu concordo com a regulação dessa matéria o quanto antes, porque há ilícitos de tal gravidade praticado por magistrados que exigem uma destituição, uma demissão, uma desinvestidura forçada do cargo e não uma aposentadoria proporcional ao tempo de serviço". É uma pena que, também nesse caso, o Supremo se haja omitido.
A verdade que não quer calar é que o argumento de que tanto o Judiciário quanto o Ministério Público já dispõem de mecanismos punitivos a seus membros faltosos desmorona diante da realidade factual. O próprio Ayres Britto critica, com veemência, o fato de magistrados faltosos se sujeitarem, apenas, a processos administrativos conduzidos pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), resultando na pena máxima de aposentadoria compulsória, com salário plenamente proporcional ao tempo de serviço. Tanto que os 48 condenados, até agora, pelo CNJ custam ao contribuinte R$ 16,4 milhões por ano, representando uma média salarial de R$29.000,00 ao mês. Nada mal para quem desonrou a toga.
Justificável para os casos de erro administrativo, a extensão da aposentadoria para crimes que devem ser apurados em ação penal caracteriza intolerável abuso e quebra do princípio da isonomia. A condenação de juízes transitada em julgado deve resultar em demissão sem direito a salário vitalício. "É inconcebível um magistrado que age como um bandido", arremata Ayres Britto, numa condenação genérica aos “predadores institucionais”.
Nossa tradição, herdada da prática ibérica, como acentuou Raymundo Faoro no clássico Os donos do poder, é de leniência corporativa, como se observa nas entidades de classe de todas as profissões no Brasil: advogados bandidos atuam livremente, como médicos faltosos, líderes religiosos, etc. O Ministério Público e o Judiciário regem-se pelo mesmo diapasão.
A edição da lei, como aprovada na Câmara, não pode prosperar, sobretudo porque fomentada por parlamentares que desonram o mandato popular. Em norma autônoma, porém, é imperioso o estabelecimento de limites e de punições para membros do Ministério Público e do Judiciário que exorbitem, voluntariosamente, de suas atribuições. Afinal de contas, apesar das dificuldades que apresenta, o atual momento é o melhor possível para passarmos o Brasil a limpo, começando pela abertura de todas as caixas pretas que nos afrontam. Não importa o padrão das aeronaves.
Joaci Góes