Celso Lungaretti*
Comentando a declaração da ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) de que a tortura é crime imprescritível, o presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes disse outra obviedade: "Essa discussão sobre imprescritibilidade tem dupla face. O texto constitucional também diz que o crime de terrorismo é imprescritível". Resvalando para a retórica característica das viúvas da ditadura, Gilmar Mendes insinuou que haveria uma equivalência entre a luta armada contra o regime militar e as práticas hediondas cometidas pelos órgãos de repressão política: "Direitos humanos valem para todos: presos, ativistas políticos. Não é possível dar prioridade a determinadas pessoas que tenham determinada atuação política. Direitos humanos não podem ser ideologizados, é bom que isso fique claro". Também seria bom que ficasse bem claro para Gilmar Mendes que, desde a Grécia antiga, é reconhecido o direito que os cidadãos têm de resistirem à tirania. Então, a ninguém ocorre qualificar de "terroristas" os membros da Resistência Francesa que descarrilaram trens, explodiram pontes e quartéis, justiçaram colaboracionistas, etc., atuando com violência incomparavelmente superior à dos resistentes brasileiros. São, isto sim, merecidamente reverenciados como heróis e mártires da França. A situação era a mesmíssima no Brasil, onde um grupo de conspiradores militares obteve sucesso em sua segunda tentativa (1964) de usurpar o poder, aproveitando bem as lições da primeira (1961) para corrigirem os erros cometidos. Seus governos ilegítimos sempre sufocaram as diversas formas de resistência à tirania mediante a utilização de força maior do que aquela que se-lhes opunha, terminando por impor o terrorismo de Estado sem limites a partir da assinatura do Ato Institucional nº 5, ao abrigo do qual foram cometidos o extermínio sistemático de militantes capturados com vida, torturas as mais bestiais e generalizadas, estupros, seqüestros de parentes dos opositores (inclusive crianças) para chantageá-los, ocultação de cadáveres e outros horrores. É claro que, ao enfrentar essas bestas-feras, os resistentes daqui incorreram em alguns excessos, como sempre ocorre nas lutas desse tipo, travadas em condições de extrema desigualdade de forças. À Resistência Francesa também acontecia de errar o alvo ou exagerar na dosagem. Mas, isto não basta para que uns e outros sejam tidos como "terroristas". O termo, historicamente, designa grupelhos isolados que tentavam, com tiros e bombas, intimidar os governantes, disseminando o caos. E não, de nenhuma forma, os combatentes que recorreram à propaganda armada para levantar o povo contra governos tirânicos, como era o óbvio objetivo da resistência ao nazi-fascismo na Europa e ao totalitarismo de direita no Brasil. Foram os serviços de guerra psicológica da ditadura de 1964/85 que semearam essa confusão, caluniando as vítimas para justificar as atrocidades contra elas praticadas.
Gilmar não leu ou não entendeu a Constituição "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático", reza o inciso 44 do Artigo 5º da Constituição Federal. É no que se baseou Gilmar Mendes para repetir a cantilena da extrema-direita, segundo a qual haveria também crimes imprescritíveis de terrorismo para apurar no período 1964/85, além dos de tortura, que atingem a casa de dezenas de milhares. É chocante a indigência jurídica ou o desconhecimento histórico daquele que preside o mais alto tribunal do país! A ordem constitucional foi quebrada no malfadado 1º de abril de 1964 e hibernou durante 21 anos. O que vigorava era a desordem totalitária do AI-5, uma licença para os militares perseguirem, trancafiarem, torturarem e assassinarem os opositores como bem lhes aprouvesse. Não se pode falar em Estado democrático sem respeito às garantias individuais, equilíbrio entre Poderes e eleições livres para todos os cargos. Então, por terem golpistas vitoriosos detonado a ordem constitucional e esmagado o Estado Democrático sob seus tanques de guerra, todos os cidadãos brasileiros tinham não só o direito, como até o dever, de resistirem a eles, como soldados da democracia, armados ou não. Um presidente do STF midiático e que, como papagaio, repete falas dos carrascos, mostra-se indigno da posição que ocupa. Deveria renunciar ou ser expelido, como o corpo estranho que se tornou numa instituição que deve primar pela discrição e compostura.
Tarso diz que torturadores agiam por “conta própria”
Quanto ao ministro da Justiça, por que não se cala? Cada vez que abre a boca, ou faz o governo Lula explicitar seu viés castrense, ou dá o péssimo exemplo de sugerir atalhos em substituição aos caminhos retos que os homens dignos devem trilhar. Se houve uma Lei de Anistia promulgada sob regime de exceção como habeas-corpus preventivo para carrascos e seus mandantes, ela deveria agora ser revogada e substituída por uma verdadeira anistia, decidida em liberdade. Transferir ao Judiciário um abacaxi que o Executivo e o Legislativo relutam em descascar, esperteza sugerida pelo Tarso Genro, foi o que desencadeou a comédia de erros atual. Agora, com sua habitual sinuosidade, Tarso rebate o que Gilmar Mendes declarou, mas diz estar falando "em tese" e não respondendo especificamente ao presidente do STF. E, ao invés de assumir que, ao implantarem um terrorismo de Estado capaz de evocar o sofrido pelos países sob ocupação nazista, os militares brasileiros inviabilizaram qualquer possibilidade de resistência pacífica após o fatídico 13 de dezembro de 1968 (quando foi assinado o AI-5), Tarso prefere considerar a luta armada "um equívoco", cometido por "parcelas da juventude" que não viram outro meio de resistir. Tais parcelas da juventude impediram que o Brasil carregasse até hoje o opróbrio de haver-se sujeitado docilmente a viver debaixo das botas. Assim como a Resistência Francesa não libertou o país, mas evitou que ele ficasse identificado com Pétain e os colaboracionistas de Vichy, os poucos milhares de abnegados que ousaram travar aquele confronto desigual e trágico não resgataram o Brasil das trevas, mas salvaram a honra nacional. Caso contrário, a imagem que ficaria na História seria a de que todos os brasileiros queriam apenas locupletar-se com o milagre econômico, mandando às urtigas a cidadania. E, se havia outro meio de resistir após o AI-5, por que Tarso não o adotou, ao invés de exilar-se no Uruguai? Então, dispenso a condescendência com que o ministro aparenta defender, mas acaba depreciando a opção que ele próprio não tomou: "foi uma decisão moral respeitável e compreensível historicamente", mas "errada", tanto que "aumentou a distância entre setores da sociedade e a esquerda", etc. Assim como repudio enfaticamente a tergiversação de Tarso que, para respaldar sua sugestão oportunista de que os torturadores sejam julgados por crimes comuns (já que, supostamente, não estariam cumprindo ordens e, portanto, não teriam cometido os crimes políticos anistiados em 1979), é obrigado a fazer afirmações como a de que os casos de tortura, em sua "ampla maioria", foram cometidos por "civis, policiais ou parapoliciais, que agiam por conta própria (sic)". Até as pedras sabem que toda a cadeia de comando, do general que se fazia passar por presidente da República até o mais ínfimo carcereiro, foi responsável pela prática generalizada e ilimitada da tortura. Ao dar um cheque em branco para os verdugos, como signatário do AI-5, o então ministro Jarbas Passarinho nem sequer se preocupou em dourar a pílula: "Sei que a V. Exa. repugna, como a mim e creio que a todos os membros deste conselho, enveredar pelo caminho da ditadura. Mas às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência!". Um santo medieval, completando a frase bíblica, disse certa vez: "que tuas palavras sejam sempre sim sim ou não não, pois todo o mais será sugerido pelo demônio". Concordo e subscrevo.
*Celso Lungaretti, 58 anos, é jornalista e escritor. Mantém os blogs O Rebate, em que publica textos destinados a público mais amplo; e Náufrago da Utopia, no qual comenta os últimos acontecimentos.
Fonte: congressoemfoco
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