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segunda-feira, agosto 29, 2022

A democracia é uma planta que devemos regar todos os dias’, diz ex-presidente do Chile Ricardo Lagos




Aos 84 anos, chileno destaca impacto das eleições do Brasil para a América Latina, defende políticas de distribuição de renda e reforça necessidade de fortalecimento das instituições

Por Janaina Figueiredo 

Não são tempos fáceis na América Latina, e a eleição presidencial brasileira desperta interesse e expectativa entre presidentes de outras épocas, que são referências regionais e mundiais. É o caso do chileno Ricardo Lagos (2000-2006), primeiro presidente socialista a assumir o poder em seu país depois de Salvador Allende (1970-1973), derrubado pelo golpe de Augusto Pinochet. Em entrevista ao GLOBO, Lagos afirmou que “as democracias devem ser cuidadas e mantidas”.

Infectado pela primeira vez pela Covid-19, o ex-presidente, de 84 anos, falou sobre o drama da desigualdade na região, defendeu reformas tributárias profundas, a necessidade de que a América Latina tenha uma única voz para enfrentar os novos desafios globais e de que os presidentes falem com franqueza de suas limitações e possibilidades. “Um presidente é o principal comunicador de um país, deve saber se conectar com as pessoas e deve dizer a verdade”, frisou Lagos.

Qual é sua expectativa sobre a eleição presidencial no Brasil?

Esta eleição no Brasil terá enorme impacto, porque estamos falando do país mais importante da região. Sempre digo que a América Latina existe quando Brasil, México, até ontem a Argentina e daqui para frente a Colômbia, coincidem num olhar comum. Hoje, isso não acontece. Um dos atores desta eleição, Lula, deixou o poder em 2010, veja quanto mudou o mundo desde então. O Lula que eu conheci, com o qual trabalhei num período em que fui presidente, era de outra época. O presidente (George W.) Bush, nos EUA, estava preocupado com o atentado às Torres Gêmeas. Tivemos posições importantes e tivemos de dizer não ao presidente Bush e à sua guerra no Iraque. Chile e México estavam no Conselho de Segurança das Nações Unidas e nos opusemos à guerra. Os contatos com Lula eram importantes e, naquele momento, a América Latina era importante. Hoje a América Latina, por desgraça, não existe. Os presidentes têm dificuldades para falar entre eles, e quando falam muitas vezes não estão de acordo.

Antes, sobre questões internacionais, existia um alto grau de coincidência. Portanto, a eleição no Brasil é importante. O Lula que conhecemos pode ser o mesmo, mas o mundo mudou. A Covid-19 antecipou a chegada de um novo mundo, no qual passamos da Revolução Industrial à Revolução Digital. Os conceitos de esquerda e direita têm a ver com o mundo industrial, com a dicotomia entre capital e trabalho. Essa forma de pensar acabou. Hoje temos unicórnios azuis, e o que é isso? O conceito do trabalho mudou. Nesse contexto acontece a eleição do Brasil, com dois candidatos, Lula e o presidente atual, que é um pouco diferente dos presidentes que conhecemos, para dizer o mínimo. Eu conheci o Brasil de Lula, depois do Brasil de Fernando Henrique Cardoso. E quero destacar, em todos os casos, o papel do Itamaraty.

No plano de governo apresentado por Jair Bolsonaro recentemente, ao contrário de 2018, a política externa volta a antigas tradições e fala em defesa da “ordem global multipolar”.

Isso é importante, porque uma coisa que estávamos acostumamos é ao multilateralismo. É preciso entender que hoje mudou o papel das grandes potências. A China de hoje não é a mesma de 2010, e como vamos nos adaptar, como região, a essas novas realidades? Sabemos que o futuro é, por exemplo, o novo entendimento entre China e Índia, é a região da Ásia-Pacífico. O mundo está mudando muito rápido.

O Brasil é sócio de ambos os países, e também de Rússia e África do Sul, nos Brics…

Essa é outra questão fundamental, o que vai acontecer com os Brics? Seria diferente o papel que teria Lula nesse grupo do que eventualmente teria, se decidisse fazê-lo, o presidente Bolsonaro. São dois mundos muito diferentes, e dois Brasis muito diferentes. Tem enorme importância quem será o presidente do Brasil, do ponto de vista da política externa global.

Nas últimas eleições na América Latina predominou a opção por uma mudança.

Sem dúvida, e mudança por quê? Porque existe uma sensação de que a América Latina avançou, que tem uma classe média que cresceu um pouco, mas, ao mesmo tempo, é uma região muito injusta. Os indicadores sociais não nos orgulham. A questão é como gerar um estado de bem-estar nos moldes europeus, num mundo muito mais integrado.

Como é possível ter uma única voz na América Latina quando existem países que violam regras do sistema democrático, direitos humanos, como Venezuela e Nicarágua?

As democracias estão em perigo. Aparecem atalhos, demagogos, os que prometem o que sabem que não podem cumprir. Observo esses dois países com preocupação. Quando vemos o caso do (Viktor) Orbán, na Hungria, com todo respeito, ele foi capaz de governar com todo o poder concentrado em uma só pessoa. As insatisfações sociais permitem que alguns pensem que podem existir caminhos fáceis, atalhos, e esses atalhos podem gerar rupturas institucionais grandes.

Nos casos de El Salvador, Nicarágua, já houve rupturas da ordem democrática?

Claro, esse é o drama. A verdade é que não existem atalhos, é preciso fazer um trabalho duro, firme e constante para satisfazer as demandas crescentes de uma sociedade que vê que o país cresce e que esse crescimento não chega a suas vidas. Como explicamos isso na América Latina? Temos de crescer e depois distribuir os frutos. Muitos querem distribuir frutos de um crescimento que não chega, e isso não é viável. As democracias devem ser cuidadas e mantidas. A democracia é uma planta que devemos regar todos os dias, e isso significa entregar algo todos os dias quando o país cresce.

Estamos em 2022 e continuamos discutindo como fazer da América Latina uma região menos desigual.

O boom das commodities foi um verão que chegou à América Latina, mas em matéria de distribuição de renda não se avançou da mesma maneira. Normalmente, os que estão melhor não querem falar sobre como distribuir. Mas é preciso entender que se não houver uma melhor distribuição, não poderemos resolver estes problemas. O Estado de bem-estar dos europeus levou muito esforço, e foi alcançado entendendo que todos devem participar. No caso do Chile, há mais de 20 anos, os recursos da arrecadação fiscal representam 20% do PIB, e na Alemanha, veja você, representam 35%. E vou dizer algo que me envergonha: a metade desses 20% é o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), o imposto ao consumo. Essas situações tão injustas devem ser abordadas, e não são. Uma vez, um alemão me perguntou por que fazíamos estradas e cobrávamos pedágio. Tive de explicar que não tínhamos os impostos que a Alemanha tem, o que lhes dá o privilégio de ter estradas e não cobrar pedágio. Quando o país cresce todos devem ganhar, e não apenas alguns.

O senhor, como muitos presidentes de sua época, teve ‘lua de mel’ após assumir e deixou o governo com um alto índice de aprovação. Como avalia o rápido desgaste dos novos governos da América Latina?

Uma questão fundamental é a comunicação dos chefes de Estado. Um presidente é o principal comunicador de um país, deve saber se conectar com as pessoas e deve dizer a verdade. No pior momento de meu governo, tive 45% aprovação. Quando saí, tinha 70%. Num determinando momento, disse que resolveria o problema das filas dos hospitais em poucos meses, percebi que fracassaria e decidi explicar por que fracassaria. Disse à ministra da Saúde, que era a futura presidente (Michelle) Bachelet, que devíamos nos antecipar, dizer que não cumpriríamos a meta, antes de que nos dissessem que não a tínhamos cumprido. As pessoas não se atrevem mais a fazer isso. Temos de explicar à sociedade o que podemos e o que não podemos, o que depende dos governos e o que depende de outros.

O Globo

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