Pode um presidente insinuar o “suicídio” de um promotor de Justiça? Processo por corrupção de Cristina Kirchner está incendiando um país já em transe.
Por Vilma Gryzinski
O Brasil próximo das eleições parece um caldeirão fumegante? Pois comparada à Argentina, a temperatura política nacional mal daria para fritar uma linguicinha para fazer um delicioso choripán.
É claro que as respectivas crises têm muitos pontos em comum, pois o modus operandi das esquerdas populistas é muito parecido, principalmente quando envolve empreiteiras, obras públicas e grandes quantidades de dinheiro não contabilizado.
Mas imaginem o que aconteceria se o atual presidente brasileiro insinuasse o “suicídio” de um integrante do poder judiciário de quem discorda.
Pois foi o que fez o presidente Alberto Fernández, depois que o procurador Diego Luciani apresentou as provas no processo em que pede doze anos de prisão e cassação vitalícia dos direitos políticos para Cristina Kirchner – um dos três casos que correm contra ela, como ex-presidente, na justiça. A relação das mais de 50 obras públicas concedidas a um ex-bancário amigo da família é devastadora.
Fernández, que não fala mais com sua patrona e entregou o comando da economia para Sergio Massa, evocou nada menos do que uma comparação com Alberto Nisman, um dos casos mais explosivos da história argentina. O juiz que apresentaria uma denúncia contra Cristina por cooperação com o Irã para obstruir o papel do regime islamista como arquiteto do atentado contra a associação judaica AMIA, apareceu “suicidado” no banheiro de seu apartamento em janeiro de 2015.
O caso se arrasta há anos, mas a justiça por fim decidiu investigá-lo como homicídio, baseada na posição do corpo, da arma, nos ferimentos internos constatados em necrópsia e em outros indícios que confirmam as suspeitas universais de que foi um atentado muito bem planejado para parecer suicídio.
Na época, o próprio Fernández, que estava rompido com Cristina, fez declarações sobre o absurdo das versões oficiais.
Na semana passada, numa entrevista de televisão, ele achou que era uma boa ideia dizer o seguinte: “O que aconteceu com Nisman é que se suicidou. Eu espero que que o procurador Luciani não faça algo assim”.
Com duas frases, ele tacou fogo num país já fervilhante, a ponto de ter um pedido de impeachment e uma denúncia criminal apresentados pela oposição.
Nos bastidores, dirigentes do kirchnerismo ficaram furiosos: a campanha para apresentar Cristina como uma figura impoluta, vitimada pela “perseguição judiciária e mediática”, foi suplantada pela barbaridade dita por Fernández, que colocou o procurador Luciani no papel de vítima.
“É melhor que ele não ajude mais”, ironizou um dirigente kirchnerista ouvido pelo Clarín.
O kirchneerismo está mobilizado para o pátio dos milagres armado em frente ao apartamento de Cristina na Recoleta, embora, por dentro, as eternas divisões do peronismo estejam fervendo. Sergio Massa assumiu para fazer os cortes nas despesas de governo que inevitavelmente revoltam os “movimentos sociais” – as organizações entre as quais o peronismo distribui o dinheiro dos outros.
Estaria Alberto Fernández sendo esperto e criando fatos políticos que aumentem a temperatura emocional, enquanto Sergio Massa vai fazendo o trabalho inevitavelmente dolorido?
O jornal La Nación abriu essa possibilidade num editorial avassalador: “Dá vergonha ver o chefe de Estado decidido a acompanhar a multiprocessada vice-presidente em sua estratégia de ‘apertar’ juízes e promotores, e disposto a endossar mobilizações e bumbos que só buscam calar a voz da justiça, distrair sobre os efeitos do ajuste e alterar a paz social”.
Estão assim em confluência múltiplos fatores explosivos: a política econômica austera para evitar o apocalipse, endossada por Cristina apenas até o ponto em que a interesse; o estado de emergência que ela decretou para se livrar dos processos na justiça na marra e a composição das forças políticas para a eleição presidencial do ano que vem.
É uma combinação simplesmente infernal.
“As decisões de política econômica vão aumentar o nível de irracionalidade e as medidas que poderiam ter um custo em popularidade vão passar a ser inaceitáveis”, diagnosticou para Jorge Lanata o diretor de um banco de investimentos.
É um modo elegante de dizer que o destino de Massa já está selado.
Seria maravilhoso se a Argentina, jogando em condições tão negativas, invertesse as expectativas e reproduzisse a sensacional vitória do time nacional de rugby, os Pumas, sobre os neozelandeses, em seu próprio território. Nem o legendário haka do time local funcionou.
O problema é que, como sempre, a Argentina está jogando contra si mesma. O haka que dança é o da autodestruição e os recentes incidentes em frente ao apartamento de Cristina Kirchner indicam que o campo está cada vez mais aberto à combustão.
Revista Veja